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Vegetarianismo e anemia: desmistificando essa relação | Colunistas

Vegetarianismo e anemia: desmistificando essa relação | Colunistas

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O que significa ser vegetariano?

Se buscarmos sua definição no dicionário, encontraremos que vegetarianismo é um regime alimentar baseado unicamente no uso de vegetais, ou seja, ele exclui os produtos de origem animal.

A Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) preconiza esse vegetarianismo estrito, no entanto, reconhece a existência de outros três principais tipos: ovolactovegetarianismo (utiliza ovos, leite e laticínios), lactovegetarianismo (utiliza leite e laticínios) e ovovegetarianismo (utiliza ovos).1,2

De onde surge a relação anemia x vegetarianismo?

Anemia

Vamos, agora, tentar entender de onde surge essa relação entre anemia e vegetarianismo. Primeiramente, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a anemia é definida por níveis séricos de hemoglobina abaixo dos valores de referência – os quais mudam de acordo com o laboratório, estando o valor mínimo em torno de 13,5 g/dl para homens, e 11,5 g/dl para mulheres.3

Essa hemoglobina é uma metaloproteína que está presente nas hemácias e tem a função de transportar oxigênio. De forma resumida, vamos lembrar que a eritropoetina produzida pelos rins estimula a produção de eritroblastos pela medula óssea, os quais, ao expulsarem seu próprio núcleo, se tornam reticulócitos, e estes, hemácias.

Acontece que para que a medula óssea produza essas hemácias, ou seja, para que ocorra a eritropoiese, são necessárias concentrações suficientes de ferro, vitamina B12 e folato. Se existe uma deficiência desses elementos essenciais, a produção de eritrócitos fica diminuída e as concentrações de hemoglobina caem – lembrando que esse é apenas um dos mecanismos de queda dos valores da hemoglobina (eles podem diminuir, ainda, por destruição excessiva de eritrócitos ou por perdas sanguíneas).

Deficiência de ferro

Segundo a OMS, a deficiência de ferro é a desordem nutricional mais comum no mundo. No Brasil, 30% das gestantes e 50% das crianças têm deficiência de ferro.1 O corpo de um indivíduo adulto bem nutrido e saudável contém de 3 a 4 g de ferro – sendo que 60 a 70% desse ferro total compõem o éritron (órgão descontínuo formado pelo somatório de eritroblastos, reticulócitos e hemácias).4

Agora que entendemos a importância desse ferro, vamos entender sua absorção. O ferro dietético de origem animal (derivado da hemoglobina e da mioglobina) é chamado de ferro heme, enquanto o de origem vegetal, não heme. De forma simplificada, a diferença entre o ferro heme e o não heme é que o primeiro tem o anel de porfirina em torno dele (como se fosse uma bolha de proteção), enquanto o segundo não o tem. Isso quer dizer que quando você se alimenta do ferro heme, poucas coisas irão alterar sua absorção – diferentemente do ferro não heme, que é muito mais vulnerável a fatores que facilitam ou dificultam a absorção. Por isso existe o conceito de que o ferro heme é bem absorvido (de excelente biodisponibilidade) e que o ferro não heme é mal absorvido (de baixa biodisponibilidade).

Daí surge a teoria de que indivíduos onívoros sempre têm menor risco de desenvolvimento de anemia ferropriva que vegetarianos. No entanto, essa não é uma verdade absoluta como muitos pensam. O ferro heme é absorvido de 10 a 40%, enquanto o ferro não heme (vegetal) é absorvido de 2 a 20%. Na verdade, a carne tem a junção dos dois ferros – quando o animal é recém abatido, 60% do seu ferro é igual ao vegetal e 40% é o ferro heme. Com todo o processo de congelamento e o aquecimento, boa parte desse ferro heme é perdida.1

A taxa de absorção média de ferro da carne está em torno de 18%, enquanto a do feijão, 10%. Para fins didáticos, vamos comparar, agora, a ingesta de ferro em 100g de um contrafilé bovino, o qual contém 1,7 mg de ferro, com 100g de feijão carioca, o qual contém cerca de 8 mg de ferro.1 Ao fazermos os cálculos – e considerando que a absorção de ferro diária que um adulto precisa é de 1 a 2 mg –, percebemos que obtemos 0,306 mg de ferro com os 100 g de carne e 0,8 mg com os 100 g de feijão. Ou seja, ainda que a biodisponibilidade do ferro heme seja maior em alimentos de origem animal, sua quantidade absoluta pode ser maior em alimentos de origem vegetal.

Além do mais, existem orientações específicas quanto ao papel promotor ou inibidor de alguns elementos na absorção do ferro – a vitamina C por exemplo ajuda na absorção do ferro não heme, enquanto o cálcio inibe a absorção de ambos os tipos de ferro. Outro fator importante é a acidez do estomago, que facilita a absorção de ferro – ou seja, usuários de inibidores de bomba de prótons podem ter sua absorção prejudicada.

Com isso já podemos perceber que o argumento de que ferro do alimento animal é essencial para a nossa alimentação começa a perder parte de sua força. Ainda que a pessoa ingira a proteína animal ela irá precisar complementar sua dieta com outros alimentos para garantir a quantidade diária mínima recomendada. Ou seja, tanto o vegetariano quanto o onívoro têm chances de desenvolver uma anemia ferropriva.

Deficiência de vitamina B12 e/ ou folato

A vitamina B12 e o folato (vitamina B9) são vitaminas do complexo B fundamentais precursores do DNA. De forma resumida, tanto os folatos como a vitamina B12 são indispensáveis para a síntese da timidina, um dos nucleotídeos que compõem o DNA, e a carência de um deles tem como consequência menor síntese de DNA.5

A vitamina B12 é comumente encontrada em alimentos de origem animal, como ovo, leite e carne, mas sua produção é feita por bactérias, enquanto o folato é encontrado, em abundância, em alimentos folhosos, principalmente verdes-escuros, como espinafre.

A B12 é o único nutriente que o vegetariano talvez precise complementar, mesmo com uma alimentação bem planejada, por só estar presente em quantidade significativa nos alimentos de origem animal.2 A deficiência de folato acaba sendo menos frequente porque geralmente reflete uma ingesta inadequada.

Como as necessidades diárias de B12 são ínfimas (0,5-2 g/dia)5, e ela é encontrada primariamente em alimentos de origem animal, comumente a dieta vegetariana estrita é vista como vilã nos casos de deficiência de B12. No entanto, estudos sugerem que a deficiência dessa vitamina atinge cerca de 50% dos vegetarianos e cerca de 40% da população não vegetariana da América Latina.2 Isso significa que a deficiência de B12 não é um problema de quem é vegetariano, mas sim um problema de saúde geral.

É importante ressaltar, ainda, que uma deficiência de vitamina B12 e/ou folato reflete uma redução crônica dessas substâncias, já que o organismo armazena vitamina B12 suficiente para três a seis anos, e folato no fígado por cerca de três meses. Ou seja, é um acompanhamento médico possível de ser feito para evitar prejuízos aos pacientes.

É possível ser vegetariano, e não ser anêmico, sem suplementar?

Primeiramente, devemos lembrar que, na medicina, “nem nunca, nem sempre”. Em adultos, existe sim a possibilidade de seguir uma dieta vegetariana sem suplementação, no entanto, pelo menos, a vitamina B12, muito provavelmente, precisará ser suplementada. Inclusive, os próprios animais destinados ao abate para consumo acabam necessitando dessa suplementação.

Você pode se perguntar “mas e as gestantes? E as crianças?”. Ainda que, por necessidades metabólicas diferenciadas, existam guias separados para essas duas entidades maravilhosas, elas também podem ser vegetarianas, mas isso exige cuidado, acompanhamento médico e suplementação.

Em relação à gestante, é importante a gente entender que a demanda de ferro em uma gestação é tão alta que, quando ele não é suplementado, a mulher pode terminar a gestação com deficiência de ferro – seja ela vegetariana ou onívora. Até 60% das gestantes apresentam anemia por deficiência de ferro, com resultados negativos na qualidade de vida, no feto e no lactente.4 Além do mais a cobertura de folato na gestante é importante na formação neurológica do bebê; assim como o aporte adequado de vitamina B12 que age como cofator no processo precursor do DNA.

Em resumo, a ideia desse texto é esclarecer que existem fontes alimentícias animais e vegetais capazes de suprir suas necessidades de elementos básicos da nutrição, e que, seja você onívoro ou vegetariano, talvez precise de suplementação – cada caso deve ser avaliado individualmente por um profissional de saúde qualificado para tal. Outro ponto muito importante a ser esclarecido é que nenhuma deficiência de ferro ou de vitamina B12, seja em vegetarianos ou em não vegetarianos, pode ser corrigida exclusivamente pela alimentação.2


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

1.         Slywitch E. Alimentação Sem Carne Guia Prático. São Paulo: Editora Impressa; 2006.

2.         Slywitch E. Tudo o que você precisa saber sobre alimentação vegetariana.

3.         Resumo de Anemia: epidemiologia, tratamento e mais! [Internet]. [citado 23 de março de 2021]. Disponível em: https://www.sanarmed.com/anemias-definicao-epidemiologia-quadro-clinico-fisiopatologia-tratamento

4.         Mariana de Almeida Santos Arruda M, Stella Figueiredo M. Anemia por Deficiência de Ferro. In: Tratado de Hematologia.

5.         Zago MA. Carências de Folatos ou Vitamina B12. :10.

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