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Trombose da veia porta: fisiopatologia e fatores de risco | Colunistas

Trombose da veia porta: fisiopatologia e fatores de risco | Colunistas

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A associação da trombose da veia porta com uma variedade de distúrbios já é conhecida desde o final do século passado. Esses distúrbios incluem sobretudo a cirrose hepática e hipertensão portal. Entretanto, malignidades, infecção intra-abdominal e sequela de cirurgias abdominais também são relatadas. Neste artigo, você aprenderá como funciona biológica e fisiopatologicamente o mecanismo da trombofilia e os principais fatores de risco de trombose em pacientes com e sem cirrose hepática.

Fígado e sua relação com o fluxo sanguíneo

O fígado tem um sistema circulatório único, evoluído para proteger o órgão contra eventos isquêmicos. No entanto, quando esse fluxo é impedido de seguir normalmente, consequências clínicas importantes podem aparecer. No nível sinusoidal, a privação de fluxo sanguíneo por microtrombos da veia porta é proposta como causa de fibrose, atrofia de órgãos e hipertensão portal. Por outro lado, quando a interrupção desse fluxo sanguíneo ocorre através das veias mesentéricas esplâncnicas, chama-se de lesão de extinção do parênquima, conceito que foi originalmente definido para enfatizar as consequências da isquemia para o fígado.

Já a trombose não tumoral da veia porta associada às tributárias esplâncnicas pode ocorrer a partir de uma variedade de etiologias subjacentes, incluindo hipertensão portal, hipercoagulabilidade e lesão endotelial. No diagnóstico inicial, é importante distinguir entre a trombose venosa portal comum relacionada à cirrose e à não cirrótica. Essa distinção deve ser crítica, pois a avaliação, prognóstico e tratamento são diferentes. Além disso, a avaliação cuidadosa para associação de malignidade hepática primária é essencial.

Estabelecer a duração da trombose, se aguda ou crônica, a anatomia e a extensão dentro do sistema venoso mesentérico esplâncnico são também de fundamental importância para ajudar a definir uma melhor abordagem ao paciente.

Biologia da hipercoagulabilidade na trombose de veia porta

A trombofilia, tendência ao surgimento de tromboses, define uma condição caracterizada por hipercoagulabilidade, que pode ser tanto herdada quanto adquirida, secundária a defeitos de hemostasia que levam à trombose venosa (raramente arterial). A hipercoagulabilidade é evidente em pacientes não cirróticos e cirróticos com trombose de veia porta, mas é frequentemente caracterizada por vias diferentes. As mutações genéticas herdadas, como fator V Leiden e polimorfismos do gene da protrombina G20210A são mais comuns em pacientes com cirrose e não cirróticos trombóticos de veia porta.

Essas mutações comuns são fatores pró-coagulantes relativamente fracos em comparação com deficiências hereditárias de fatores anticoagulantes, como antitrombina, proteína C e a proteína S. Entre as condições trombofílicas adquiridas, a síndrome antifosfolipídica é caracterizada por positividade persistente de anticoagulante lúpico e/ou anticorpos de fase sólida para cardiolipina ou b2-glicoproteína-I. Ademais, são relatados também deficiências de anticoagulantes naturais, altos níveis de fatores pró-coagulantes ou a presença da síndrome antifosfolipídica em pacientes com trombose de veia porta. Entretanto, a atividade fenotípica de anticoagulantes que ocorre não pode ser facilmente medida em pacientes com trombose de veia porta cirróticos, tendo em vista o comprometimento da capacidade de síntese do fígado.

Da mesma forma, os testes de anticoagulantes lúpicos na síndrome antifosfolipídica podem ser prolongados além do limite superior do intervalo de referência na cirrose. Além disso, os anticorpos de fase sólida para cardiolipina ou b2-glicoproteína-I foram medidos apenas esporadicamente em pacientes com trombose de veia porta e não de acordo com os padrões mais recentes segundo a literatura. Assim, de acordo com as pesquisas, essas associações ainda permanecem incertas.

De acordo com evidências científicas, acredita-se que o sistema de rebalanço hemostático na cirrose é propenso à hipercoagulabilidade, como demonstrado por estudos de geração de trombina in vitro. Este equilíbrio é principalmente devido à diminuição dos níveis de proteína C e níveis aumentados de fator VIII. A proteína C ativada é o inibidor fisiológico do FVIII, sendo este último o mais potente driver de geração de trombina. Logo, alto níveis de FVIII, baixos níveis de proteína C e a proporção FVIII/PC são um índice importante de hipercoagulabilidade na cirrose.

Neste aspecto, pacientes com cirrose resistentes à ação anticoagulante da trombomodulina (in vitro) são mais propensos a desenvolver trombose de veia porta novamente. A trombofilia também pode ocorrer por meio de outros mecanismos, incluindo níveis aumentados de micropartículas derivadas de células circulantes contendo fosfolipídios carregados negativamente ou fator de tecido derivado das células precursoras, como plaquetas ou monócitos. Além disso, neutrófilos ativados em áreas de inflamação causam liberação de armadilhas externas que pode aumentar a geração de trombina sem afetar níveis dos fatores pró ou anticoagulantes, e isso aumenta o risco considerável de tromboses em paciente com ou sem a doença hepática avançada.

O que pode também contribuir para a hipercoagulabilidade e hiperatividade plaquetária são os altos níveis de lipopolissacarídeo bacteriano derivado do intestino, muito comuns na cirrose. A avaliação isolada de qualquer um dos componentes individuais da tríade de Virchow é insuficiente para definir inteiramente risco individual.

Contudo, existem recursos compartilhados entre os pacientes com trombose de veia porta cirróticos e não cirróticos, além da localização anatômica do acontecimento. Ambos os grupos de pacientes respondem à anticoagulação com heparina de baixo peso molecular, antagonistas da vitamina K ou anticoagulantes orais de ação direta, quando administrados para profilaxia primária ou terapia. Este padrão de resposta desempenha um papel fundamental na hipercoagulabilidade em ambas as formas principais de trombose de veia porta não tumoral.

Fisiopatologia da trombose da veia porta

A baixa pressão hemodinâmica e fluxo sanguíneo diminuído, associado ao alto volume do sistema venoso portal, configuram um ambiente vascular especial para a formação da trombose. Todas as tromboses venosas são multifatoriais, porém apresentam componentes em comum, da tríade de Virchow (hipercoagulabilidade, lesão endotelial e estase venosa). Alguns riscos são considerados dominantes para o desenvolvimento de trombose de veia porta em pacientes com ou sem cirrose hepática, podendo ser classificados quanto aos riscos decorrentes de processos locais ou sistêmicos.

Em pacientes sem cirrose, um estado hipercoagulável sistêmico é frequentemente implicado em trombose de veia porta. Dentre os fatores de riscos locais nesses pacientes, estão malignidade, infecções intra-abdominais, trauma abdominal e cirurgia intra-abdominal (por exemplo, esplenectomia). Em pacientes com cirrose, o desenvolvimento desse acometimento de veia porta está intimamente associado ao fluxo de sangue portal estático decorrente do avanço da hipertensão portal, juntamente com o desenvolvimento espontâneo de desvios portossistêmicos. Enquanto os fatores locais mais comuns relacionados à cirrose são, por exemplo, malignidades como hepatocarcinoma celular (HCC), cirurgia (hepatectomia) e terapia local regional para HCC (quimioembolização ou radioembolização).

Fatores de riscos da trombose da veia porta

Fatores de risco de hipercoagulabilidade em trombose de veia porta nos pacientes não cirróticos

A maioria dos riscos mais associáveis à hipercoagulabilidade desses pacientes são neoplasias mieloproliferativas (NMP), mutação do gene G20210A da protrombina e a síndrome antifosfolipídica. As NMPs promovem o aumento da agregação plaquetária e geração aumentada de trombina. Essas neoplasias podem ser diagnosticadas a partir de sangue periférico e teste de medula óssea.

Fatores de risco de hipercoagulabilidade em trombose de veia porta nos pacientes cirróticos

Todos os componentes da tríade de Virchow, incluindo redução do fluxo sanguíneo portal, hipercoagulabilidade e lesão endotelial contribuem para o desenvolvimento de trombose de veia porta na cirrose. Estudos não mostraram claramente os benefícios dos testes genéticos de trombofilia e o custo-benefício da triagem de pacientes com tromboembolismo venoso, e isso está sendo cada vez mais discutido.

Os testes em populações de alto risco podem ser úteis, como em pacientes cirróticos com histórico familiar de defeitos protrombóticos, pacientes com múltiplos locais de trombose, trombose recorrente ou quando as decisões de tratamento podem ser afetadas. A disfunção endotelial vascular é comum na doença hepática, mas não é facilmente avaliada pelos testes disponíveis. Enquanto a avaliação do endotélio vascular por meio de marcadores endoteliais, como o fator de Von Willebrand e/ou micropartículas endoteliais circulantes, é promissora, a utilidade clínica é pouco clara.

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Autor: Josiel Neves da Silva – Acadêmico de Medicina do Centro Universitário São Lucas (UniSL)

Instagram: @josielnevs