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Trauma na gestante | Colunistas

Trauma na gestante | Colunistas

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Alterações anatômicas e fisiológicas na gestação

A gravidez, como evento único e especial na vida da gestante assume papel transformador na vida da mesma devido a alterações fisiológicas, hormonais, hemodinâmicas, emocionais e anatômicas que ela traz. Cada gravidez tem sua peculiaridade e singularidade, de forma que mesmo aquelas que vem acompanhadas de problemas, na maioria das vezes, acabam se tornando extremamente gratificantes, alegres e satisfatórias. Nesse momento da vida, é de fundamental importância o apoio dos familiares e amigos, para que aquela gestante não se sinta sozinha e desemparada em uma fase tão importante, que com certeza mudará sua vida para sempre.

Diferenças anatômicas

Até a 12ª semana o útero encontra-se protegido dentro da pelve, mais ou menos na 20ª semana alcança a cicatriz umbilical, atinge o rebordo costal entre a 34ª e 36ª semanas e nas duas últimas semanas o fundo uterino vai descendo ao mesmo tempo em que a cabeça do feto se encaixa na pelve.

Durante o crescimento uterino o intestino é direcionado para cima e se desloca mais para a parte superior do abdome. Em casos de trauma abdominal contuso o útero fica mais exposto e o intestino acaba sendo mais protegido. Já em casos de trauma penetrantes que lesam o abdome superior, teremos lesão intestinal.

O líquido amniótico ao passo que protege e nutre o feto, pode causar embolia e coagulação intravascular após traumatismo em casos de ganho de espaço intravascular.

Fraturas de pelve em gravidez avançada pode ter como consequência fratura craniana fetal ou lesões intracranianas graves.

Com relação a placenta, ela apresenta elasticidade diminuída, quando comparada com o músculo uterino, o que causa uma fragilidade às forças de cisalhamento na interface útero-placentária, que pode levar ao descolamento da placenta. Catecolaminas tema a capacidade de sensibilizar facilmente os vasos placentários e por isso em casos de queda do volume sanguíneo materno, ocorre um aumento de resistência vascular uterina que reduz a oxigenação fetal para que os sinais vitais maternos se mantenham normalizados.

Volume e composição do sangue

Com o passar da gravidez o volume de plasma vai aumentando, alcançando seu pico por volta da 34ª semana de gestação. No entanto, a proporção no aumento de volume de hemácias não se dá igualmente, o que causa uma anemia fisiológica da gravidez.

As vezes uma gestante pode perder cerca de 1,2 a 1,5L de volume para que seja percebido sinais e sintomas de hipovolemia. Mas apesar desses sinais demorarem de surgir, pode acarretar sofrimento fetal, que se pode concluir a partir de alterações da frequência cardíaca fetal.

É comum encontrar leucocitose porque há um aumento de leucócitos durante a gravidez e principalmente durante o trabalho de parto. Além disso fatores de coagulação e níveis de fibrinogênio no sangue estão um pouco altos, mas o tempo de sangramento e coagulação não se alteram.

Hemodinâmica

Em pacientes grávidas traumatizadas deve-se considerar o débito cardíaco, a frequência cardíaca, a pressão arterial, a pressão venosa e alterações de eletrocardiograma.

Débito cardíaco

O débito cardíaco se configura como o volume de sangue que o ventrículo esquerdo ejeta por minuto. Partindo dessa ideia, ele aumenta em 1 a 1,5L/minuto, depois da 10ª semana, devido ao aumento do volume plasmático e à redução da resistência vascular do útero e da placenta. Isso ocorre porque essas estruturas recebem em média 20% do débito cardíaco durante o 3° trimestre. Esse aumento do débito cardíaco pode ter influência da posição materna durante a 2ª metade da gestação (em posição supina pode haver redução do débito em 30%, pois há descompressão da veia cava inferior).

Frequência cardíaca

Pelo fato de haver aumento gradual da frequência cardíaca durante a gravidez, e tendo o terceiro semestre como valor máximo, deve-se considerar como taquicardia secundária à hipovolemia a alteração da frequência cardíaca.

Pressão arterial

Durante o segundo trimestre, pode haver queda de 5 a 15mmHg nas pressões sistólica e diastólica e, a termo, a pressão arterial retorna ao normal. Posicionamento supino pode causar hipotensão (há compressão da veia cava inferior) e é necessária a descompressão, reduzindo a pressão uterina sobre essa veia. Casos de hipertensão gestacional indicam possível pré-eclâmpsia, caso venha acompanhada de proteinúria.

Pressão venosa

No terceiro trimestre, é comum a hipertensão venosa de membros inferiores e a pressão venosa central em repouso varia durante a gravidez. Contudo, a reposição de volume obtém respostas semelhantes a uma paciente que não esteja grávida.

Alterações eletrocardiográficas

Pode ser usual o achatamento ou a inversão da onda T em D3, A VF e nas derivações precordiais. É comum uma maior ocorrência de extrassístoles durante o período gestacional.

Sistema respiratório

Uma PaCO2 de 30mm Hg (hipocapnia) é comum ao final da gestação. Em casos que ela suba e fique entre 35 e 40mmHg, tem-se uma ameaça de insuficiência respiratória. Além disso, é fundamental a garantia de uma boa oxigenação na reanimação da paciente traumatizada, porque, durante a gravidez, há um aumento no consumo de oxigênio.

Sistemas gastrointestinal, urinário, musculoesquelético e neurológico

Começando pelo sistema gastrointestinal, você deve saber que o estômago acaba demorando mais para esvaziar e por isso é necessário que se realize uma descompressão gástrica precocemente para evitar aspiração de conteúdo gástrico. Além disso, nessa fase da vida é comum a paciente apresentar glicosúria, aumento da filtração glomerular e queda pela metade de níveis plasmáticos de ureia e creatinina.

Quando você for avaliar uma radiografia de bacia de uma paciente gestante é necessário que lembrar que no 7º mês há um alargamento da sínfise púbica e dos espaços das articulações sacroilíacas. E, em casos de trauma fechado associado a fratura pélvica é importante avaliar presença de hemorragia retroperitoneal maciça. Por fim, mas não menos importante, não se esqueça que a avaliação de um neurologista e de um obstetra é de fundamental importância para diferenciar eclampsia de outras causas de convulsões uma vez que ela pode simular um trauma craniano. Com isso, deve considerá-la em casos de convulsões acompanhadas de hipertensão, hiper-reflexia, proteinúria e edema periférico.

Mecanismos de trauma

Trauma fechado

Apresenta como causa principal acidentes automobilísticos, seguido por queda e agressão direta ao abdome.

Apesar de a parede abdominal, o miométrio e o líquido amniótico protegerem o feto de lesões diretas secundárias ao trauma fechado, existe possibilidade de ocorrer um trauma direto ao feto em casos de impacto contra objeto rígido, como um volante de carro. Já compressões súbitas, desaceleração ou cisalhamento podem causar um trauma indireto ao feto e resultar num descolamento de placenta.

Mesmo que o uso de cinto de segurança seja obrigatório, sabe-se que muitos não o usam. Com isso, acidentes de mulheres grávidas sem cinto favorecem ao trabalho de parto prematuro e morte fetal em relação a grávidas que sofrem acidente com o uso do cinto. Além disso, existem 3 tipos de cinto: o pélvico ou subabdominal, torácico ou diagonal e o de três pontos; que afetam a frequência de ruptura uterina e morte fetal. O cinto de três pontos (o que você deve preferir usar) dissipam as forças numa superfície maior, sendo mais eficientes, porém a sua porção abdominal deve ficar abaixo das cristas ilíacas anterossuperiores e não sobre o abdome. Ele reduz as chances de lesão fetal direta ou indireta porque aumenta a superfície de contato e dissipa a força de desaceleração. Com isso, você deve avaliar se houve uso de cinto pela gestante traumatizada e qual era o tipo.

Trauma penetrante

Você viu anteriormente que algumas vísceras ficam mais protegidas (intestino que ascende para o abdome superior) e, em casos de trauma penetrante (exemplo: projétil), a musculatura uterina, o feto e o líquido amniótico absorvem, de certa forma, uma quantidade de energia, influenciando a diminuição da velocidade do projétil, de forma que outras vísceras não sejam atingidas. Contudo, por essas estruturas serem seriamente lesadas ao absorverem tal energia, o prognóstico materno é favorável e o fetal é extremamente ruim.

Gravidade do trauma

A identificação da gravidade do trauma permite que a avaliação do prognóstico e das condutas de tratamento sejam feitas da forma mais adequada. Por isso, é de extrema importância o encaminhamento de gestantes traumatizadas, mesmo que com traumas leves, para um serviço que tenha recurso obstétrico e cirúrgico.

Avaliação e tratamento

A avaliação e reanimação inicial deve ser na mãe e depois avaliar o feto antes da avaliação secundária da mãe.

Avaliação primária e reanimação

Mãe

Você deve garantir a via aérea dela, inicialmente com oxigenação e ventilação adequadas e um volume circulatório efetivo. Quando necessário, realize intubação e mantenha a PaCO2 ideal para a idade gestacional dela.

Importante se atentar para a descompressão de veia cava, que, quando comprimida, causa queda do débito cardíaco e agravamento do choque. Para realizar a descompressão você deve deslocar manualmente o útero para a esquerda. Em casos que a paciente esteja imobilizada em posição supina, é indicado rotacionar em bloco para a esquerda para que a descompressão da veia cava inferior seja mantida e garantida.

Grávidas necessitam de cuidados especiais durante a avaliação, porque elas inicialmente podem não apresentar alterações de sinais vitais, entretanto o feto pode estar em sofrimento e a placenta sem perfusão. Isso ocorre porque o aumento do volume intravascular pode fazer a gestante perder uma quantidade significativa de volume circulante antes dos sinais de hipovolemia se apresentarem.

Para que a hipervolemia fisiológica do período gravídico seja mantida, deve-se iniciar reanimação com cristaloide e reposição precocemente de sangue tipo específico, de forma que os vasopressores sejam o último recurso para normalizar a pressão sanguínea da mãe, pois reduzem fluxo sanguíneo uterino causando hipóxia fetal. Como você viu anteriormente, é comum, durante a gravidez, um aumento do valor nos níveis de fibrinogênio e, por isso, deve-se avaliar esses níveis além dos testes laboratoriais indicados para pacientes traumatizados.

Feto

Uma identificação de lesões maternas graves possibilita avaliar a viabilidade de manutenção da vida do feto através do exame do abdome, uma vez que a causa principal de morte fetal é o choque e morte materno e a segunda causa é o descolamento de placenta (apresenta como achados hemorragia vaginal, dor à palpação uterina, contrações frequentes). Além dessas causas, existe a ruptura uterina (rara), identificada pela presença de dor abdominal, defesa, rigidez ou descompressão brusca positiva principalmente em casos de choque grave, posição anormal do feto, facilidade em palpar partes fetais e impossibilidade de palpar fundo uterino

Durante a avaliação fetal, é importante a monitorização dos batimentos cardíacos fetais, que podem ser feitos com doppler, a partir da 10ª semana, e de forma contínua com cardiotocografia após 20 a 24 semanas de gestação.

Medidas auxiliares na avaliação primária e na reanimação

Mãe

Após o exame físico, é ideal a monitorização da paciente em decúbito lateral esquerdo (mais uma vez, é necessária a descompressão da veia cava inferior). Deve-se monitorar a volemia, oximetria de pulso e realizar gasometria arterial.

Feto

Toda gestante traumatizada deve ter os batimentos cardíacos fetais avaliados, pois eles são indicadores de estado volêmico materno e viabilidade fetal. A frequência deve se situar entre 120 a 160 batimentos por minuto e, em casos de oscilações, desacelerações repetidas, variabilidade de um batimento para o outro e em momentos de contrações uterinas frequentes, você deve suspeitar de descompensação fetal e/ou materna.

Avaliação secundária

A avaliação secundária de uma gestante e de uma não gestante seguem da mesma maneira, de forma que as indicações para tomografia, LPD e FAST são as mesmas, com algumas ressalvas. Na LPD, o cateter deve ser posicionado acima do fundo uterino, utilizando a técnica aberta, mas essa técnica não possibilita a avaliação de trauma dos órgãos retroperitoneais, nem das lesões intrauterinas.

Exames laboratoriais devem ser solicitados, como: tipo sanguíneo, prova cruzada e contraprova, contagens de glóbulos brancos e plaquetas; dosagens de eletrólitos, ureia, creatinina, fibrinogênio e determinação do tempo de tromboplastina parcial ativada, tempo de protrombina, teste de Kleihauer-Betke (detecção de hemácias fetais na corrente sanguínea materna) e exames toxicológicos.

Deve-se atentar para a existência de contrações uterinas e contrações tetânicas que sugerem trabalho de parto prematuro e descolamento de placenta respectivamente. É ideal uma boa avaliação da região do períneo (exame vaginal para checar presença de hemorragia que indique descolamento de placenta), associado a um exame pélvico e avaliação do pH do líquido amniótico (entre 7 e 7,5 indica possível ruptura de bolsa).

Como foi dito em avaliação primária e reanimação da mãe, a paciente deve ser admitida em um serviço capacitado com recursos, para que possa ser internada, tratada e monitorada adequadamente (mãe e feto).

Tratamento definitivo

Existem alguns problemas específicos que envolvem o útero e que prescindem da consulta de um obstetra, como descolamento placentário extenso, embolia por líquido amniótico, hemorragia feto-materna etc. Em casos de descolamento placentário, pode haver diminuição de fibrinogênio e outros fatores de coagulação; já em casos de embolia, deve-se fazer com urgência a evacuação uterina. Quando houver hemorragia feto-materna, é possível ter como consequência anemia fetal, morte e isoimunização em casos de a mãe ser Rh negativa.

Gestantes traumatizadas devem receber imunoglobulina Rh nas primeiras 72h após o trauma, a menos que o trauma seja distante do útero.

Cesárea perimortem

Cesárea perimortem refere-se ao parto cesáreo em uma situação na qual a gestante está in extremis ou sob ressuscitação cardiopulmonar.

Você deve lembrar que, mesmo a mãe não apresentando alterações de sinais vitais, o feto pode estar em sofrimento e, à medida em que o quadro dela piora, menores são as chances de viabilidade fetal. Com isso, em quadros onde a mãe apresente uma parada cardíaca por hipovolemia, o feto já está em hipóxia por um bom tempo. Entretanto, quando a parada cardíaca da gestante não ocorre por trauma, a cesárea perimortem pode ser de sucesso, contanto que ocorra de 4 a 5 minutos após a parada.

Autora: Beatriz Soares

Instagram: _biasoaresm