A cirrose é um processo que caracteriza-se por formações de fibrose difusa e anormalidade da estrutura do parênquima, podendo ser o estágio final de qualquer doença hepática.
A prevalência média está estimada em 100/100.000 habitantes, mas há imprecisão nesses dados por muitos de seus portadores estarem assintomáticos.
Fisiopatologia da cirrose
A cirrose é caracterizada por faixas de fibrose e nódulos de regeneração que são causados pelos mecanismos descritos seguir.
Primeiro, as células de Kupfer, ao sofrerem injúrias por uma série de toxinas (o que inclui álcool, drogas, medicamentos), passam a secretar citocinas inflamatórias. Essas citocinas agem nas células de Ito, as quais normalmente produzem Vit. K, mas que sob estímulo das citocinas passam a sintetizar colágeno.
Há a chamada capilarização dos sinusoides, pois eles perdem suas fenestrações, o que afeta as trocas gasosas entre o sangue e os hepatócitos. Além desse dano no sinusoide, as células estreladas tornam-se miofibroblastos, se contraindo e diminuindo o diâmetro dos sinusoides, explicando porque a cirrose pode evoluir com hipertensão portal intra-hepática.
Por fim, isso causa uma desestruturação do parênquima hepático, gerando feixes de fibrose (devido à essa síntese de colágenos) além de nódulos de regeneração. Como haverá danos aos capilares hepáticos, o sangue não consegue chegar adequadamente aos hepatócitos e eles acabam morrendo e depois se regenerando de uma forma totalmente anárquica.
A cirrose geralmente é irreversível, principalmente em estágios mais avançados, porém a detecção e o tratamento precoces possibilita a regressão da fibrose.
Etiologias da cirrose
Existem diversas causas de doenças hepáticas que podem levar à cirrose, sejam elas devido à inflamação crônica do fígado ou à colestase.
Nos países desenvolvidos, as causas mais comuns de cirrose são:
- Hepatite viral crônica (como hepatite B e C);
- Doença hepática associada ao álcool;
- Hemocromatose;
- Doença hepática gordurosa não associada ao álcool;
Outras causas menos comuns incluem hepatite autoimune, cirrose biliar (primária e secundária), colangite esclerosante primária, uso de medicamentos, doença de Wilson, deficiência de alfa-1 antitripsina, entre outras.
Manifestações clínicas da cirrose
As manifestações clínicas da cirrose variam amplamente, dependendo do estádio da doença. Dessa forma, o paciente pode ser assintomático sem sinais de doença hepática crônica ou pode apresentar-se confuso, ictérico, com emaciação muscular grave e ascite.
É possível fazer a divisão em duas condições:
- Cirrose hepática compensada, pobre em sinais e sintomas em considerável parte dos casos;
- Cirrose hepática descompensada, com presença de complicações.
O primeiro quadro é identificado através de alterações como hepatomegalia e níveis aumentados de transaminases, detectadas durante realização de exames físicos e laboratoriais de rotina. É bastante frequente uma história mórbida pregressa de hepatite sem etiologia definida, uso crônico de álcool ou sintomatologia vaga, tal como astenia, perda ponderal, dispepsia, epistaxe, lentidão de raciocínio e edema.
Alguns pacientes permanecem nessa fase por toda a vida, falecendo por outras causas, enquanto outros evoluem para insuficiência hepática e hipertensão portal em poucos meses ou anos.
Já o segundo quadro se apresenta com complicações da cirrose hepática, tais como ascite, encefalopatia e hemorragia digestiva alta, através de insuficiência e hipertensão portal. Em geral, o paciente apresenta fraqueza progressiva com sinais evidentes de déficit do estado nutricional e diminuição de massa muscular. Esses pacientes ainda podem exibir hálito hepático e icterícia.
A progressão para a morte pode ser acelerada em decorrência do desenvolvimento de outras complicações, como sangramento gastrointestinal recorrente, insuficiência renal (ascite refratária, síndrome hepatorrenal), síndrome hepatopulmonar e sepse (peritonite bacteriana espontânea).
Exame físico
Alguns achados físicos podem ocorrer em pacientes com cirrose, como:
- Aranhas vasculares, mais habitualmente no tronco, face e membros superiores;
- Eritema palmar envolvendo as eminências tenar e hipotenar e as pontas dos dedos;
- Perda de cabelo no peito e abdome, ginecomastia e atrofia testicular em homens;
- Petéquias e equimoses podem estar presentes como resultado da trombocitopenia ou tempo de protrombina prolongado;
- Lobo hepático direito menor, com extensão de menos de 7 cm na percussão, e lobo esquerdo palpável, nodular, com consistência mais densa.
- Esplenomegalia, que é indicativa de hipertensão portal;
- Circulação colateral na parede abdominal (cabeça de medusa), também como consequência da hipertensão portal;
- Em casos mais graves, ascite, edema e icterícia podem ocorrer.
Diagnóstico da cirrose
Em pacientes com suspeita de cirrose, exames de imagem abdominal (geralmente ultrassonografia) são realizados para avaliar o parênquima hepático e identificar possíveis manifestações extra-hepáticas associadas à cirrose.
Embora a biópsia hepática seja o método definitivo para confirmar o diagnóstico, muitas vezes não é necessária se os achados clínicos, laboratoriais e de imagem indiquem a presença de cirrose e não haja impacto no manejo do paciente.
Suspeita-se de cirrose em pacientes que apresentam:
- Estigmas de doença hepática crônica identificados no exame físico;
- Evidências de cirrose em exames laboratoriais, radiológicos ou observados diretamente em procedimentos cirúrgicos;
- Evidência de cirrose descompensada, marcados pelo aparecimento de complicações graves, como hemorragia digestiva alta, ascite, peritonite bacteriana espontânea ou encefalopatia hepática.
Os resultados de testes laboratoriais sugestivos de cirrose abrangem desde níveis séricos de albumina ou bilirrubina anormais, como elevação do “índice de normalização internacional” (INR).
O achado laboratorial mais sensível e específico sugestivo de cirrose no conjunto das doenças hepáticas crônicas é a contagem baixa de plaquetas (<150.000/mm3), que ocorre como resultado da hipertensão portal e hiperesplenismo.
Os exames por imagem confirmatórios incluem a tomografia computadorizada, o ultrassom e a ressonância magnética. Os achados compatíveis com cirrose consistem em:
- Contorno hepático nodular;
- Fígado diminuído com ou sem hipertrofia do lobo caudado ou esquerdo;
- Esplenomegalia;
- Identificação de vasos colaterais intra-abdominais.
A elastografia transitória, por sua vez, é uma técnica não invasiva com base na propagação de ondas de ultrassom, que mede a rigidez do fígado e parece ser útil no diagnóstico de cirrose.
Principais complicações da cirrose
Entre as principais complicações da cirrose estão:
- Hemorragia digestiva alta;
- Ascite;
- Peritonite bacteriana espontânea (PBE);
- Encefalopatia hepática;
- Síndrome hepatorrenal;
- Gastropatia hipertensiva portal;
- Carcinoma hepatocelular;
Quando essas complicações surgem, considera-se cirrose descompensada. Diversos fatores podem contribuir para essa descompensação, como sangramento, infecção, consumo de álcool, certos medicamentos, desidratação e constipação. Além disso, a obesidade é um fator que aumenta o risco de descompensação.
Complicações adicionais incluem trombose da veia porta e cardiomiopatia, embora essas, por si só, não caracterizem a cirrose descompensada.
Hemorragia digestiva alta
Os pacientes geralmente apresentam hematêmese e/ou melena, com altas taxas de mortalidade.
Além disso, o tratamento principal envolve ligadura elástica das varizes por via endoscópica. Outras opções terapêuticas incluem escleroterapia endoscópica e o uso do shunt portossistêmico intra-hepático transjugular (TIPS).
Ascite
Caracteriza-se pelo acúmulo de líquido na cavidade peritoneal e, além disso, é a complicação mais frequente da cirrose. O primeiro fator que leva ao desenvolvimento de ascite em pacientes com cirrose é o surgimento da hipertensão portal.
O tratamento da ascite envolve a combinação de diuréticos com restrição de sódio. Contudo, alguns pacientes podem precisar de paracenteses terapêuticas repetidas ou da inserção de um TIPS.
Peritonite bacteriana espontânea (PBE)
Refere-se a uma infecção do fluido ascítico e ocorre quase exclusivamente em casos avançados de doença hepática.
Seus sintomas incluem febre, dor e sensibilidade abdominal, além de alterações no estado mental, apesar de alguns pacientes se apresentarem assintomáticos.
Confirma-se o diagnóstico por uma cultura bacteriana positiva no líquido ascítico e/ou uma contagem elevada de leucócitos polimorfonucleares (≥250 células/mm³) no líquido.
Encefalopatia hepática
A encefalopatia hepática abrange uma série de alterações neuropsiquiátricas reversíveis observadas em pacientes com disfunção hepática.
Uma das características iniciais comuns é a alteração do ciclo de sono-vigília, como insônia e hipersonia, que geralmente ocorre antes dos sinais neurológicos evidentes.
Nos avanços mais avançados, podem surgir sintomas como asterixe, hiperatividade dos reflexos tendinosos profundos e, menos frequentemente, postura descerebrada temporária.
Síndrome hepatorrenal
Caracteriza-se pelo desenvolvimento de insuficiência renal em pacientes com doença hepática avançada, seja por cirrose, hepatite hepática grave, insuficiência hepática aguda ou, em casos mais raros, por tumores metastáticos.
A vasodilatação arterial na circulação esplâncnica, provocada pela hipertensão portal, desempenha um papel central nas mudanças hemodinâmicas e na piora da função renal na síndrome.
O diagnóstico é de exclusão, sendo feito quando outras causas de disfunção renal são descartadas.
Gastropatia hipertensiva portal
É muito comum em pacientes com hipertensão portal, mas é uma causa rara de sangramento nesses casos significativos. A mucosa torna-se friável e o sangramento provavelmente é causado pela ruptura dos vasos dilatados.
Carcinoma hepatocelular
Pacientes com cirrose apresentam um risco consideravelmente maior de desenvolver carcinoma hepatocelular (CHC). Na maioria dos casos de hepatite crônica, esse risco não aumenta até que a cirrose esteja presente. Contudo, pacientes com infecção crônica pelo vírus da hepatite B podem desenvolver CHC mesmo sem presença de cirrose.
Além disso, algumas causas de cirrose associam-se a um risco mais elevado de CHC. Aqueles com cirrose resultante de hepatite B, hepatite C, esteato-hepatite não secreta e hemocromatose estão em maior risco, enquanto pacientes com cirrose por hepatite autoimune e doença de Wilson parecem ter um risco menor.
Devido à grande reserva funcional do fígado, os pacientes com CHC muitas vezes são assintomáticos nas fases iniciais, resultando em diagnósticos tardios. Sinais e sintomas comuns relacionam-se ao efeito de massa do tumor, como dor, saciedade precoce, icterícia obstrutiva e presença de uma massa palpável. Ademais, os CHCs podem romper e causar hemoperitônio.
Por fim, o diagnóstico de CHC pode ser sugerido por elevações graves de alfa-fetoproteína sérica (AFP) ou por características radiográficas típicas.
Tratamento da cirrose
O tratamento da cirrose idealmente deve visar à interrupção ou à reversão da fibrose.
Atualmente, o tratamento da cirrose compensada está direcionado para a prevenção do desenvolvimento da descompensação:
- Tratar a doença hepática subjacente (p. ex., terapia antiviral para hepatite C ou B) para reduzir a fibrose e evitar a descompensação;
- Evitar fatores que possam piorar a doença hepática, como o álcool e fármacos hepatotóxicos;
- Fazer rastreamento para detectar varizes (para prevenir hemorragia varicosa) e carcinoma hepatocelular (para que o tratamento seja realizado no estádio inicial).
Para casos mais avançados, o manejo inclui tratar as complicações (varizes esofágicas, ascite, encefalopatia, entre outros) e orientar o paciente quanto a mudança de estilo de vida. Entretanto, em alguns casos, devemos começar a pensar em transplante.
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Sugestão de leitura complementar
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Referências
- GOLDBERG, E. Cirrhosis in adults: Etiologies, clinical manifestations, and diagnosis. UpToDate, 2024.
- GOLDBERG, E.; CHOPRA, S. Cirrhosis in adults: Overview of complications, general management, and prognosis. UpToDate, 2024.




