A medicina vive uma tensão crescente: por um lado, o tradicional papel do paciente — alguém em condição de vulnerabilidade, dependente de expertise médica. Por outro lado, emerge o papel de cliente — alguém que consome serviços, compara, escolhe e exige. Além disso, com redes sociais, acesso à informação e glamourização da carreira médica, essa transformação acelerou. Consequentemente, redefine a jornada do médico, a relação médico-paciente e o próprio mercado de saúde.
O que diferencia sociologicamente “paciente” e “cliente” em saúde?
O que caracteriza o paciente?
● Vulnerabilidade.
● Assimetria de conhecimento.
● Busca pela competência técnica.
● Centralidade da doença e do tratamento.
● Menor disposição para pagar fora do sistema (plano/seguro).
● Foco menor na hotelaria e maior na qualificação clínica.
O que caracteriza o cliente de saúde
● Consumo ativo, escolha e comparação.
● Maior disposição para pagar.
● Busca estética, bem-estar, performance e prevenção.
● Valorização da experiência: ambiente, marca médica, comunicação.
● Menor assimetria de conhecimento (informação prévia online).
● Expectativas elevadas e comportamento de mercado.
Dessa forma, os dois papéis coexistem, mas se guiam por lógicas sociológicas distintas.
Por que o paciente está se tornando cliente?
Redução da assimetria de conhecimento
A internet e as redes sociais diminuíram o abismo entre o conhecimento do médico e o do leigo. Assim, o indivíduo chega ao consultório com informações prévias, ainda que muitas vezes incorretas. Além disso, traz expectativas moldadas por influenciadores e comparações online.
Redes sociais, branding médico e glamourização
A medicina transformou-se também em narrativa e imagem pública. Consequentemente, médicos com forte presença digital influenciam decisões. Clínicas “Instagramáveis”, além disso, moldam expectativas e reforçam o comportamento de cliente. Desse modo, o “paciente” passa a agir como consumidor de uma marca.
Medicalização da normalidade e expansão do mercado de bem-estar
A medicina migra de “resolver doenças” para “resolver incômodos”, aumentar performance e promover longevidade. Dessa forma, o mercado de bem-estar — em expansão global — atrai indivíduos com alta disposição de pagamento e fortalece o comportamento de cliente.
Mudanças no modelo de pagamento
Copagamentos, franquias, planos premium e serviços particulares ampliam a autonomia de escolha. Como resultado, o comportamento muda porque o indivíduo agora tem opções — e paga por elas.
Protagonismo cultural do indivíduo
A sociedade contemporânea valoriza autonomia, personalização e participação ativa. Por isso, na saúde, há menos submissão e mais negociação.
Impactos da transformação na jornada do médico
O médico como marca
Competência técnica passa a ser apenas um dos critérios. Além disso, o cliente analisa comunicação, presença digital, atendimento e experiência. O médico precisa de clareza estratégica sobre posicionamento.
Nova estrutura de consulta
O cliente quer explicações, opções, autonomia e conveniência (telemedicina, concierge, acompanhamento digital). Consequentemente, o médico precisa equilibrar comunicação, técnica e gestão de expectativas.
Segmentação do modelo de negócio
Cresce o mercado de estética, performance, prevenção e wellness. Com isso, tempo de consulta, precificação, marketing e estrutura operacional mudam.
Competitividade e reputação digital
Com avaliações públicas e exposição nas redes, o cliente troca de médico com mais facilidade. Por isso, a gestão de reputação se torna parte essencial do trabalho médico.
Novo papel educativo do médico
Se o paciente acha que sabe, o médico passa a ser curador e não apenas fonte de conhecimento. Assim, a educação médica precisa formar profissionais prontos para esse novo contexto.
Tabela comparativa: Paciente vs Cliente
| Dimensão | Paciente | Cliente |
| Motivação | Doença e cura | Bem-estar, estética, performance |
| Disposição para pagar | Baixa | Alta |
| Critério de escolha | Formação, competência | Comunicação, marca, experiência |
| Importância da experiência | Menor | Alta |
| Assimetria de conhecimento | Alta | Baixa |
| Relação com o médico | Autoridade tradicional | Negociação e consumo |
| Tipo de demanda | Doenças claras | Incômodos, normalidade, otimização |
| Risco sistêmico | Desinformação | Medicalização e excesso de expectativas |
Desafios e riscos na transformação paciente → cliente
Desvio da missão médica
A satisfação baseada em “amenidades” pode distorcer percepções de qualidade. Contudo, o risco é priorizar hotelaria sobre desfechos clínicos.
Medicalização excessiva
A expansão do mercado de bem-estar exige ética e evidências. Entretanto, há risco de ultrapassar limites, sobretudo quando há alta disposição de pagamento.
Gestão de expectativas
Clientes esperam conveniência, agilidade e explicações detalhadas. Portanto, o médico precisa desenvolver novas competências de comunicação e serviço. Além disso, deve alinhar expectativas de forma transparente.
Competências do médico contemporâneo
O médico precisa dominar:
- comunicação clara.
- atendimento humanizado.
- marketing ético.
- gestão de reputação.
- entendimento de jornada do cliente e experiência.
Desse modo, ele se adapta ao novo contexto sem perder o foco na segurança e no cuidado.
Balanço entre escala e personalização
A experiência premium é cara e complexa. Por isso, é necessário equilibrar sustentabilidade com diferenciação. Embora modelos altamente personalizados atraiam clientes, eles nem sempre são escaláveis.
Implicações para a educação médica e gestão em saúde
Essa mudança exige currículos que incluam:
- experiência do paciente/cliente.
- marketing médico ético.
- comunicação digital.
- posicionamento profissional.
- gestão de jornada.
- modelos de negócios em saúde.
- segmentação e diferenciação de serviços.
Assim, forma-se um profissional mais preparado para o novo ecossistema da saúde.
Conclusão
Estamos diante de uma transformação sociológica profunda: o comportamento do paciente se aproxima, cada vez mais, do comportamento de cliente. Consequentemente, isso altera a jornada do médico, reposiciona o setor e exige novas competências. Ainda que a experiência seja importante, ela não substitui competência; da mesma forma, marketing não substitui ética; e aparência não substitui desfecho clínico.
O futuro da medicina exige o melhor dos dois mundos — técnica irrepreensível e experiência memorável — sem perder, porém, a essência do cuidado.
Referências
Young, Cristobal. Patients as Consumers: Hospitality and Patient Satisfaction in the New Market for Medicine. Stanford Center for Poverty and Inequality. Disponível em: https://inequality.stanford.edu/sites/default/files/Young-paper.pdf
McKinsey & Company. Consumers rule – driving healthcare growth with a consumer-led strategy. Disponível em: https://www.mckinsey.com/industries/healthcare/our-insights/consumers-rule-driving-healthcare-growth-with-a-consumer-led-strategy
ResearchGate. No longer a patient: The social construction of the medical consumer. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/235289046_No_longer_a_patient_The_social_construction_of_the_medical_consumer
Harvard Business Review. Health Care Systems Need to Better Understand Patients as Consumers. Disponível em: https://hbr.org/2023/04/health-care-systems-need-to-better-understand-patients-as-consumers
Wikipedia. Patient. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Patient
Estudos e relatórios sobre comportamento do consumidor em saúde e medicalização contemporânea.

