Carreira em Medicina

E agora, José? Eu não sei nada (ainda) sobre o nervo abducente! | Colunistas

E agora, José? Eu não sei nada (ainda) sobre o nervo abducente! | Colunistas

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Imagem de perfil de Dra Carol Bonini

O artigo de hoje começa com uma história verídica, vivenciada por mim no Natal de 2020. Cheguei ao plantão no pronto-socorro de Oftalmologia dia 25 de dezembro, mentalizei um plantão tranquilo e chamei o primeiro paciente do dia. Sr. José entrou na sala acompanhado de sua esposa e parecia muito assustado.

“Doutora, por favor, me ajude. Há dois dias eu acordei com o olho desviado e estou enxergando tudo dobrado.”

Seu José tinha 65 anos, era diabético e hipertenso há muito anos, com pouco controle clínico de ambas as doenças. Negava trauma, outras comorbidades e qualquer outro sinal ou sintoma. Referia que fora dormir na noite anterior e acordou com o olho direito desviado para dentro. A visão dupla ocorria principalmente quando olhava para longe e para a direita.

Ao final do exame físico, eu já tinha uma hipótese diagnóstica: a paralisia de sexto par craniano. Um quadro bastante desafiador no contexto da prática médica.

Senhor José e sua esposa me olharam ansiosos e perguntaram: – E agora, doutora?

Anatomia e função

Caro leitor, a neuroanatomia pode ser um tanto assustadora, porém, a fim de entendermos quais as possíveis causas de uma paralisia de nervo craniano, precisamos conhecer o seu trajeto e função. Então, segure-se na cadeira, força na peruca e vamos lá!

O nervo abducente, também conhecido como sexto nervo craniano, é puramente motor e atua principalmente sobre o músculo extraocular reto lateral, realizando a abdução ipsilateral do olho.

Podemos dividi-lo em quatro porções: núcleo, cisternal, do seio cavernoso e orbitária. O núcleo (a origem) do nervo abducente (VI NC) está situado no assoalho do quarto ventrículo, abaixo do colículo facial, e é suprido por ramos pontinos da artéria basilar. O núcleo do nervo facial (VII par) fica bem próximo e suas fibras fazem uma volta ao redor do núcleo do abducente (figura 1). A porção fascicular corre ventralmente através da formação reticular na ponte e do trato piramidal, deixando o tronco encefálico na junção ponto medular. Ele então assume um trajeto vertical para a face ventral da ponte, onde é cruzado pela artéria cerebelar anterior inferior e continua pelo espaço subaracnóideo até perfurar a dura-máter logo abaixo do ápice petroso que se localiza aproximadamente 2 cm abaixo do processo clinoide posterior 1, 2.

Antes de chegar ao seu destino final, ele ainda passa pelo seio cavernoso – juntamente com os nervos oculomotor, troclear e o primeiro ramo do trigêmeo (V1) – e caminha inferior e lateralmente à carótida interna. Além disso, pode transportar fibras simpáticas provenientes do plexo carotídeo1, 2.

A entrada na órbita ocorre através da fissura orbital superior, onde ele encontra o seu destino final: o músculo reto lateral ipsilateral 1,2,3. É importante lembrar que o abducente também inerva parcialmente o músculo reto medial contralateral (essa é uma das razões pelas quais os olhos movem-se lateralmente de forma coordenada)4.

Por ter um trajeto muito longo (é o nervo mais longo de todos!), passando por diversas estruturas dentro do crânio, torna-se muito suscetível a lesões por diversos mecanismos1.

Clínica

Quando há paralisia isolada do sexto par você encontrará:

  • Esotropia: o olho estará desviado para o nariz;
  • Diplopia:
    • Pode melhorar quando o paciente fixa o olhar para perto ou quando ocluir o olho acometido;
  • E pode piorar quando olha para longe ou quando o paciente tenta olhar para o lado da lesão;
  • Posição de cabeça: o paciente gira a cabeça na direção do músculo paralisado para tentar compensar a função deficiente.

Anamnese e exame físico

A história é o aspecto mais importante para o diagnóstico de uma condição neuro-oftalmológica. Ao avaliar um paciente com suspeita de paralisia do abducente (e de outros nervos também!), devemos questionar:

  • História de trauma;
  • Cirurgias oftalmológicas prévias, neurocirurgias, infecções recentes e tumores;
  • Início e duração do quadro: se foi agudo ou insidioso;
  • Comorbidades;
  • Medicamentos e drogas;
  • Sinais de alarme: instabilidade hemodinâmica, desorientação, vertigem, sinais focais, dor importante, presença de infecção.

Exame físico

  • Avaliar a deambulação do paciente, se há ptose, assimetria facial, posição de cabeça;
  • Acuidade visual;
  • Motricidade ocular extrínseca;
  • Alinhamento ocular: cover test, Krimsky ou Hirschberg;
  • Reflexos pupilares;
  • Fundo de olho: procurar por sinais de hipertensão intracraniana ou outros sinais que possam auxiliar no diagnóstico de doenças específicas.

Exames de imagem

Indicados em pacientes com déficit focal, suspeita de esclerose múltipla, cefaleia de início recente ou complicações clínicas. O exame de escolha é a ressonância nuclear magnética com contraste de crânio e órbita. Em algumas situações, como suspeita de esclerose múltipla, deve-se solicitar avaliação de neuroeixo também.

Causas de paralisia do nervo abducente

A clínica da paralisia do VI par craniano é relativamente fácil de ser identificada, o grande problema é identificar a causa. Lembre-se que o nervo tem um trajeto longo que passa por diversas estruturas dentro do crânio.

Podemos listar algumas causas:

  • Compressões ou estiramentos causados por tumores, aneurismas, fraturas e aumento da pressão intracraniana;
  • Acidentes vasculares que reduzem o aporte sanguíneo;
  • Síndromes desmielinizantes;
  • Processos infecciosos (por exemplo, meningite, complicações da otite média aguda);
  • Neuropatias;
  • Síndrome pós-viral: muito comum em crianças4.

Lesões centrais, que são as que acometem o núcleo, apresentam-se com paralisia do olhar para o lado lesionado (esse é um macete que eu guardo comigo: o paciente “olha” para o lado da lesão). Quando as lesões ocorrem nos fascículos (ainda dentro da ponte), geralmente estão associadas a alterações de outros nervos cranianos, caracterizando as síndromes pontinas. Se você olhar novamente a figura 1, verá que os núcleos do abducente e do facial são muito próximos e lesões compressivas ou isquêmicas podem afetar ambos simultaneamente2,3.

Lesões no ângulo ponto-cerebelar – frequentemente causadas por neuromas ou meningiomas – podem acometer o VI par e nervos contíguos, levando a paralisia facial (VII par) e diminuição da acuidade auditiva (VIII par).

Lesões traumáticas que acometem o nervo abducente podem estar relacionadas a fraturas da porção petrosa do osso temporal, contusão, estiramento ou laceração, sendo essa última muito rara. Fraturas orbitais que acometem a fissura orbital superior levarão a lesões conjuntas dos nervos abducente, oculomotor (III par), troclear (VI par) e trigêmeo (V par), e o olho do paciente parecerá congelado6. Traumatismos cranianos com acometimento tardio do VI par sugerem hipertensão intracraniana ou meningite hemorrágica6; aquela geralmente apresenta-se com paralisia bilateral do VI par1.

Durante seu trajeto o nervo abducente passa pela porção petrosa do osso temporal, assim, em alguns quadros de otite média, pode ocorrer petrosite, levando a um quadro de paralisia tanto do VI quanto do VII par craniano.

A síndrome de Gradenigo (petrosite apical), uma complicação rara e potencialmente fatal da otite média aguda, se caracteriza pela tríade: otite média, nevralgia do trigêmeo (V par) e paresia ipsilateral do VI par5.

O envolvimento simultâneo unilateral de III, IV, V e VI pares associados a nervos simpáticos sugere fortemente lesões de seio cavernoso. Vocês podem aprender um pouco mais sobre essa condição aqui.

Já o envolvimento bilateral de diversos nervos cranianos sugere um acometimento difuso, causados por doenças infiltrativas, como leucemia e linfoma, lesões expansivas centrais que se estendem bilateralmente, sarcoidose e até mesmo miastenia gravis.

Paralisia isolada em crianças é frequente após alguma doença viral4, entretanto, pode estar relacionada a gliomas de tronco encefálico e leucemia. Em indivíduos jovens pode ser o primeiro sinal de esclerose múltipla. Sendo assim, crianças e jovens com quadro clínico sugestivo de paralisia de sexto par craniano devem ser amplamente investigados.

O prognóstico das lesões desse par craniano tende a ser bom, com recuperação completa em 75% dos casos, no entanto, alguns pacientes podem desenvolver reinervação anômala, levando a movimentos erráticos do olho e alteração da reatividade pupilar6.

Como você pôde perceber, existem diversas causas para a paralisia de VI par craniano, mas a mais comum é a que acometeu o meu paciente, o senhor José.

A mononeuropatia isquêmica é a principal causa de paralisia de VI par isolada3 (raramente ocorre isquemia de mais de um par craniano). Geralmente acomete adultos acima dos 50 anos, diabéticos e hipertensos. A motricidade ocular e a diplopia tendem a melhorar com o tempo, e o quadro costuma ser resolvido em aproximadamente 6 meses. Ainda não existe um consenso sobre a realização de exames de imagem logo ao diagnóstico, entretanto, se não houver melhora alguma do quadro em 3 meses, é mandatória a realização de ressonância magnética.

Devemos ter em mente que a resolução completa do quadro clínico não significa que este seja uma condição benigna. Existem outros processos sistêmicos que, embora mais raros, podem levar à paralisia de VI par, por exemplo: sífilis, sarcoidose, doenças do colágeno e arterite de células gigantes, miastenia gravis ou tumores intracranianos3.

O artigo de hoje traz uma pincelada sobre um nervo importante e que com certeza lhe pregará algumas peças durante a vida profissional. Com essa leitura você será capaz de pensar nos principais diagnósticos diferenciais quando encontrar um quadro similar ao do senhor José. E poderá com confiança orientá-lo quando ele lhe questionar:

– E agora, doutor?


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências Bibliográficas

  1. American Academy of Ophthalmology. Fundamentals and Principals of Ophthalmology. San Francisco: American Academy of Ophthalmology; 2019.
  2. Curi Renato Luiz Nahoum, Costa Ian Curi Bonotto de Oliveira, Barroso Tábatta Graciolli Moreira. Paralisia do VI nervo (abducente). Rev. bras.oftalmol. [Internet]. 2013 Feb [cited 2021 Feb 05]; 72( 1 ): 59-69. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-72802013000100014&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-72802013000100014.
  3. American Academy of Ophthalmology. Neuro-ophthalmology. San Francisco: American Academy of Ophthalmology; 2019.
  4. Nguyen V, Reddy V, Varacallo M. Neuroanatomy, Cranial Nerve 6 (Abducens) [Updated 2020 Nov 19]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020 Jan. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK430711/
  5. Catarina Mendes, Garrido Cristina, Guedes Margarida, Marques Laura. Gradenigo syndrome: an unexpected otitis complication. Nascer e Crescer [Internet]. 2014 Mar [cited 2021 Feb 06]; 23( 1 ): 25-28. Available from: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0872-07542014000100006&lng=en.

Luiz Fernando Cannoni, Luciano Haddad, Nelson Saade, Marcio Alexandre Teixeira da Costa, Jose Carlos Esteves Veiga. Lesões traumáticas de nervos cranianos. Arq Bras Neurocir. [Internet]. 2012 Feb [cited 2021 Feb 05] ; 31 (4):184-94. Available from: https://www.thieme-connect.de/products/ejournals/abstract/10.1055/s-0038-1625707