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Doenças do teste do pezinho: características, falso-positivos e negativos | Colunistas

Doenças do teste do pezinho: características, falso-positivos e negativos | Colunistas

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Um dos testes de triagem neonatal é o teste do pezinho, que deve ser realizado idealmente entre o 3º e 5º dia de vida. O Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) do Ministério da Saúde tem em seu escopo a triagem de seis doenças: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, doença falciforme e outras hemoglobinopatias, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase. Vale lembrar que, por serem testes de triagem, são muito sensíveis, ou seja, é difícil um paciente doente não ser identificado – número baixo de falso-negativo, mas é comum pacientes não doentes terem resultados positivos – número alto de falso-positivos. Assim, esses testes servem para afastar a doença e não para confirmar uma doença. O quadro abaixo identifica algumas possíveis causas de falso-negativo e falso-positivo, as quais o pediatra deve afastar antes de dar seguimento ao diagnóstico confirmatório dessas patologias.

Quadro 1: condições que podem influenciar no resultado de algumas doenças triadas no Teste do Pezinho

DOENÇAJANELA IDEAL DE TRIAGEMCONDIÇÕES INFLUENCIADORAS NO RESULTADO
Fenilcetonúria (PKU) e outras aminoacidopatiasApós 48 horas de vidaFalso‑positivo: nutrição parenteral, doenças do fígado e imaturidade das enzimas do fígado. Falso‑negativo: coleta precoce, coleta em poucas horas pós‑transfusão ou uso do suporte vital extracorpóreo
Hipotireoidismo congênito (HC)12-72 horas de vida e 2-6 semanas de vida (segunda amostra)Falso‑positivos: prematuridade; baixo peso ao nascer; exposição ao iodo, dopamina e/ou esteroides; deficiência de iodo e coleta precoce. Falso‑negativos: prematuridade com aumento tardio de TSH; uso do suporte vital extracorpóreo
Doença falciforme (DF) e outras hemoglobinopatiasAté 72 horas de vidaFalso‑negativo: transfusão de hemácias e uso do suporte vital extracorpóreo
Fibrose cística (FC)24 horas até 7 dias de vidaFalso‑positivo: hipóxia, estresse fisiológico ou respiratório; apgar baixo, órgão danificado, trissomia 13, 18 e 21; disfunção renal; hipoglicemia; RN heterozigoto para FC e coleta precoce. Falso‑negativo: suficiência pancreática em recém‑nascidos com fibrose cística; íleo meconial, fibrose cística de aparecimento tardio e uso do suporte vital extracorpóreo
Hiperplasia adrenal congênita (HAC)12-48 horas de vida e 2-4 semanas de vida (segunda amostra)Falso‑positivo: estresse, prematuridade, baixo peso, precocidade na coleta. Falso‑negativo: tratamento materno com esteroides para prevenção de parto prematuro
Deficiência de biotinidase (DBT)Até 72 horas de vidaFalso‑negativo: transfusão e uso do suporte vital extracorpóreo
GalactosemiaAté 48 horas de vidaFalso‑positivo: GALT destruída na amostra de sangue devido ao calor, umidade ou envelhecimento. Falso‑negativo: transfusão de células vermelhas e uso do suporte vital extracorpóreo
Fontes: Clinical and Laboratory Standars Institute (2009) e https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/triagem_neonatal_biologica_manual_tecnico.pdf

Fenilcetonúria (PKU)

É um erro inato do metabolismo de herança autossômica recessiva. O defeito é causado pela enzima fenilalanina hidroxilase, que ocasiona o acúmulo do aminoácido fenilalanina (FAL) no sangue, com concentrações aumentadas de Fenilalanina sanguínea e a excreção urinária de ácido fenilpirúvico. A clínica sem tratamento é caracterizada por atraso global do desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM), deficiência mental, comportamento agitado ou padrão autista, convulsões, alterações eletroencefalográficas e odor característico na urina.

O diagnóstico da PKU é realizado com a dosagem de FAL em um valor superior a 10 mg/dL em pelo menos duas amostras distintas. O tratamento da doença é feito com dieta de baixo teor de fenilalanina por toda a vida.

Hipotireoidismo congênito (HC)

O HC é classificado em primário (falha na glândula tireoide, geralmente por disgenesia tireoidiana com ectopia), secundário (deficiência do TSH hipofisário), terciário (deficiência do TRH hipotalâmico) ou resistência periférica à ação dos hormônios tireoidianos. A clínica sem tratamento inclui: hipotonia muscular, dificuldades respiratórias, cianose, icterícia prolongada, constipação, bradicardia, anemia, sonolência excessiva, livedo reticularis, choro rouco, hérnia umbilical, alargamento de fontanelas, mixedema, sopro cardíaco, dificuldade na alimentação com deficiente crescimento pondero-estatural, atraso na dentição, retardo na maturação óssea, pele seca e sem elasticidade, atraso de DNPM e retardo mental.

Com o resultado positivo pelo teste do pezinho, deve ser dosado T4 (total e livre) e TSH em sangue venoso para a confirmação diagnóstica. O tratamento tem como base o medicamento levotiroxina sódica. Essas crianças devem ser acompanhadas com avaliação hormonal, de crescimento e puberdade, e testes psicométricos.

Doença falciforme (DF) e outras hemoglobinopatias

A DF é uma doença genética com padrão de herança autossômico recessivo e é transmitida de geração em geração, tendo como fenótipo a Hb S. Ela é causada por uma mutação na proteína hemoglobina que leva a um defeito estrutural da sua cadeia beta fazendo com que as hemácias assumam um formato de lua minguante quando submetidas a certas condições (febre, baixa tensão de oxigênio, infecções, entre outras). A criança acometida tem a seguinte clínica: anemia hemolítica, crises vaso-oclusivas (se no sistema nervoso central pode levar ao atraso do DNPM), crises de dor, insuficiência renal progressiva, acidente vascular cerebral, maior susceptibilidade a infecções e sequestro esplênico. As principais medidas de tratamento são a antibioticoterapia profilática (esquema especial de vacinação), suplementação com ácido fólico e acompanhamento especializado da criança.

Fibrose cística (FC)

A FC, também conhecida como mucoviscosidade, é uma doença hereditária autossômica recessiva caracterizada por aumento da viscosidade do muco. O quadro clínico é descrito por períodos de remissão e de exacerbação, e é dependente do grau de deficiência de cada indivíduo. Os seguintes sinais e sintomas são observados: infecções pulmonares bacterianas a (especialmente pseudomonas e estafilococos), perda de enzimas digestivas culminando em desnutrição, diabetes, insuficiência hepática, osteoporose, síndrome do íleo meconial, esteatorreia, dificuldade de ganho de peso, problemas respiratórios, perda de sal pelo suor, dor abdominal recorrente, icterícia prolongada, edema hipoproteinêmico, pancreatite recorrente, cirrose biliar, acrodermatite enteropática, retardo no desenvolvimento somático, puberdade tardia, azoospermia nos homens e infertilidade nas mulheres.

O diagnóstico presuntivo é feito com a análise dos níveis da tripsina imunorreativa (IRT) e o exame confirmatório dos pacientes suspeitos é com a dosagem de cloretos no suor (teste de suor). O tratamento consiste em acompanhamento médico, suporte dietético, uso de enzimas pancreáticas, suplementação de vitaminas A, D, E e K, e fisioterapia respiratória.

Hiperplasia adrenal congênita (HAC)

A HAC compreende um conjunto síndromes autossômicas recessivas representadas por diferentes deficiências de enzimas responsáveis pela síntese dos esteroides adrenais. As deficiências enzimáticas mais comuns são 21-hidroxilase, em aproximadamente 95% dos casos, e 11-beta-hidroxilase, em cerca de 5% dos casos. Ambas estão relacionadas com a síntese do cortisol e aldosterona. O diagnóstico presuntivo é feito com a análise da 17-hidroxi-progesterona (17-OHP), em seguida são realizados testes confirmatórios no soro.

A clínica na HAC é dependente de qual enzima está alterada e do grau de deficiência enzimática, podendo apresentar insuficiência glicocorticoide, insuficiência mineralocorticoide, excesso ou insuficiência de andrógenos. É dividida em forma clássica perdedora de sal – mais comum, forma clássica não perdedora de sal (virilizante simples) e forma não clássica (de início tardio).

  • Forma clássica perdedora de sal: nos RN do sexo feminino, há virilização da genitália externa (aumento de clitóris, fusão labial em graus variáveis e formação de seio urogenital) devido ao aumento de andrógenos intraútero. No sexo masculino, a diferenciação é normal da genitália externa na vida intrauterina, mas existem relatos de macrogenitossomia. A falta de mineralocorticoide tem manifestação precoce – geralmente a partir da 2ª semana, na forma de crise adrenal com depleção de volume, desidratação, hipotensão, taquicardia, vômitos, perda de peso, letargia, hiponatremia e hiperpotassemia.
  • Forma clássica não perdedora de sal (virilizante simples): ocorre virilização semelhante à forma perdedora de sal em ambos os sexos, com clitoromegalia, aumento peniano, pubarca precoce, velocidade de crescimento aumentada e maturação óssea acelerada – culminando em baixa estatura final. Nessa forma, não há falta de mineralocorticoide, fazendo com que os RN do sexo masculino sejam identificados tardiamente devido sinais de hiperandrogenismo.
  • Forma não clássica (de início tardio): é mais frequente que a forma clássica. Nos RN do sexo feminino, os sinais são aumento discreto do clitóris, pubarca precoce, ciclos menstruais irregulares, hirsutismo e infertilidade. Já os RN do sexo masculino são oligoassintomáticos. Ainda, podem existir pacientes assintomáticos.

O diagnóstico de forma precoce e tratamento melhora o padrão de crescimento, podendo até mesmo normalizá-lo na maioria das vezes.

Deficiência de biotinidase (DBT)

A DBT é uma doença hereditária autossômica recessiva, na qual o organismo não consegue fazer a reciclagem da biotina ou usar a biotina ligada à proteína fornecida pela dieta. Ela é classificada em deficiência profunda de biotinidase (atividade enzimática menor que 10%) e deficiência parcial da biotinidase (atividade enzimática entre 10% e 30%).

A clínica começa a partir da 7ª semana de vida com distúrbios neurológicos e cutâneos (crises epiléticas, hipotonia, microcefalia, atraso do DNPM, alopecia e dermatite eczematoide). Nas crianças sem diagnóstico precoce, pode-se apresentar com distúrbios visuais e auditivos, e atraso motor e de linguagem.

Nos RN com teste de triagem alterado (parcial ou total), faz-se o diagnóstico confirmatório com o teste quantitativo da atividade de biotinidase, podendo até mesmo complementar com estudo genético-molecular. O tratamento é uso de biotina diariamente conforme a subclassificação da deficiência de biotina identificada no teste quantitativo.

Tipos de teste do pezinho

O teste do pezinho tem diversas categorias, com cada uma delas identificando diferentes perfis de doenças. O teste básico tria cerca as seguintes doenças: fenilcetonúria e outras hiperfenilalaninemias, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme e outras hemoglobinopatias, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase). As versões mais complexas diferem tanto na nomenclatura quanto no número e tipo de doenças investigadas dependendo do laboratório. Contudo, testes mais amplificados podem abranger até mais de 100 doenças dependendo da literatura.

O teste ampliado identifica as doenças pesquisadas no teste básico e mais a deficiência de TBG (globulina ligadora da tiroxina T4) e outras aminoacidopatias, e também o distúrbio do ciclo da ureia. Já o teste plus tria as patologias do teste ampliado mais as galactosemias e a toxoplasmose congênita. Enquanto o teste master pesquisa, além das doenças do teste plus, a deficiência de G6PD, a sífilis congênita, a doença de chagas, a citomegalovirose e a rubéola congênita.

Ainda, há o teste completo, que reconhece as patologias do teste master e também tirosinemias; distúrbios da beta oxidação dos ácidos graxos e das acidemias orgânicas; deficiência de acil-CoA desidrogenase de cadeia média; doenças lisossômicas (doença de Gaucher, Pompe, Fabry e MPS I); SCID, AGAMA e outras imunodeficiências congênitas; atrofia muscular espinhal (AME 5q); AIDS / SIDA ou soropositividade para HIV e surdez congênita.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

International Society for Neonatal Screening (ISNS) https://www.isns-neoscreening.org/

Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo https://www.sbteim.org.br/

Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada e Temática. Newborn Screening: Technical Manual. Ministério da Saúde, 2016.

Genética Humana e Doenças Raras: Tipos de Teste do Pezinho https://dle.com.br/links-relacionados/tipos-de-teste-do-pezinho

Leão Letícia Lima, Aguiar Marcos José Burle de. Triagem neonatal: o que os pediatras deveriam saber. J. Pediatr. (Rio J.)  [Internet]. 2008  Aug [cited  2021  Mar  07] ;  84( 4 Suppl ): S80-S90. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021-75572008000500012&lng=en.  http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572008000500012.

Mallmann Mariana B., Tomasi Yaná T., Boing Antonio Fernando. Realização dos testes de triagem neonatal no Brasil: prevalências e desigualdades regionais e socioeconômicas. J. Pediatr. (Rio J.)  [Internet]. 2020  Aug [cited  2021  Mar  07] ;  96( 4 ): 487-494. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0021-75572020000400487&lng=en.  Epub Aug 26, 2020.  http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2019.02.008.

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