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Doença de Kawasaki: aspectos gerais e a possível relação com a COVID-19 | Colunistas

Doença de Kawasaki: aspectos gerais e a possível relação com a COVID-19 | Colunistas

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Introdução

A doença de Kawasaki (DK) é uma doença rara caracterizada por um distúrbio multissistêmico com processos inflamatórios agudos em vasos sanguíneos de pequeno e médio calibre, sendo as artérias coronárias as principais afetadas. Ela foi inicialmente descrita no Japão, em 1967, pelo pediatra Tomisaku Kawasaki, e hoje já é conhecida por ocorrer em formas endêmicas e epidêmicas nas Américas, Europa e Ásia. Acomete principalmente crianças do sexo masculino, antes dos 5 anos de idade, sendo uma das vasculites mais comuns da infância.

Apesar dos estudos feitos sobre essa doença em diversas partes do mundo, a doença de Kawasaki ainda tende a ser diagnosticada de forma tardia e, muitas vezes, é confundida com outras doenças da infância, o que retarda o início do tratamento e pode levar ao aumento do risco de desenvolver complicações cardíacas. Além disso, vários estudos analisaram, durante a pandemia do COVID-19, que a doença de Kawasaki pode ter alguma relação com os casos graves do novo coronavírus na população pediátrica. Assim, torna-se um tema bastante necessário de ser discutido e estudado em todo o mundo.

Epidemiologia

A doença de Kawasaki possui alta incidência em crianças asiáticas, especialmente naquelas de ascendência japonesa, com taxas intermediárias entre afro-americanos, polinésios e filipinos e taxas baixas entre os caucasianos.

Como já citado na introdução, é uma doença que acomete principalmente crianças menores de 5 anos de idade, sendo mais rara em adolescentes e adultos. Com relação ao sexo, é um pouco mais comum nos meninos, sendo o aparecimento da artrite mais comum nas meninas e complicações graves e até morte súbita mais comum nos meninos. Além disso, é uma doença de incidência sazonal, ocorrendo mais frequentemente entre o inverno e a primavera.

Etiologia e patogenia

A causa da doença de Kawasaki permanece desconhecida, mas o contágio por infecções virais em crianças com alguma predisposição genética é o fator mais considerado para o desenvolvimento dessa doença. As características da DK que contribuem para pensar em uma etiologia de causa infecciosa está na ocorrência de epidemias, principalmente no período de expansão dos agentes infecciosos, que se encontra entre o inverno e a primavera, como já citado.

Vários agentes infecciosos foram associados à doença de Kawasaki, mas, até hoje, nenhum agente isolado apareceu como causa predominante. Assim, entre os patógenos suspeitos de causarem a DK, estão o parvovírus B19, o adenovírus, o citomegalovírus, o rotavírus, o vírus Epstein-Barr e os vírus da família dos coronavírus, inclusive o SARS-CoV-2, responsável pela pandemia que teve início no final de 2019.

Com relação à patogênese da doença de Kawasaki, também não é totalmente definida, mas acredita-se que a presença de algum componente genético pode determinar a susceptibilidade para o desenvolvimento da doença, a ocorrência de complicações e até mesmo a resposta do paciente à medicação.

Fisiopatologia

Os achados clínicos mucocutâneos são bastante proeminentes na doença de Kawasaki, mas é a vasculite generalizada envolvendo as artérias de médio calibre que define a doença. Sendo assim, apesar de ser mais comum a inflamação vascular nos vasos coronários, essa vasculite pode acometer até mesmo veias, capilares, arteríolas e artérias maiores. Além disso, as alterações inflamatórias sistêmicas podem ocorrer em vários órgãos, podendo causar vasculites, miocardite, pericardite, pneumonite, linfadenite, entre outros.

De início, surge um edema nas células endoteliais e na camada adventícia dos vasos sanguíneos, mantendo a lâmina elástica interna intacta. Então, em torno de 7 a 9 dias após o início da febre, há um influxo de neutrófilos, rapidamente seguido por uma proliferação de linfócitos T CD8+ (que possuem mecanismos citotóxicos responsáveis por induzir a morte de células infectadas) e plasmócitos produtores de imunoglobulina A (IgA). Assim, as células inflamatórias secretam várias citocinas, interleucinas e metaloproteinases (MMP – responsável pela degradação da matriz extracelular) que terão as células endoteliais como alvo, resultando em uma cascata de eventos que irão desencadear a fragmentação da lâmina elástica interna e o dano vascular. Com isso, nos vasos muito afetados, a túnica média desenvolve inflamação com necrose das células musculares lisas, e as lâminas elásticas interna e externa podem se dividir, dando origem aos aneurismas.

Posteriormente, essas células inflamatórias ativas são substituídas por fibroblastos e monócitos, o que leva à formação de tecido conjuntivo fibroso dentro da parede do vaso. A túnica íntima prolifera e engrossa e a parede do vaso se torna mais estreita ou obstruída em decorrência de uma estenose ou de um trombo. Com isso, a morte cardiovascular pode ocorrer tanto por um infarto do miocárdio secundário à trombose de um aneurisma coronário como pela ruptura de um grande aneurisma coronário.

Quadro clínico e diagnóstico

O diagnóstico da doença de Kawasaki é essencialmente clínico, podendo lançar mão de exames laboratoriais para descartar outras doenças. Além disso, o acompanhamento com o cardiologista é essencial, devendo-se realizar ecocardiogramas seriados.

Existem duas formas da DK, a completa e a incompleta (ou atípica). Para se diagnosticar a DK completa, é necessária a presença de febre alta (acima de 39°C) que perdura por 5 dias ou mais, associada a 4 ou 5 dos seguintes sinais e sintomas:

  • Alterações nas extremidades, com eritema e edema, acompanhados de aumento da sensibilidade dolorosa, podendo haver, posteriormente, descamação periungueal que progride para região palmar e plantar;
  • Erupção cutânea polimorfa;
  • Alterações orofaríngeas, lábios eritematosos e rachados e a chamada língua em framboesa;
  • Hiperemia conjuntival bilateral, não exsudativa e indolor, que envolve principalmente a conjuntiva bulbar;
  • Linfadenopatia cervical, com diâmetro de linfonodo maior que 1,5 cm.

Por ser uma doença que causa um processo inflamatório agudo em vasos de pequeno e médio calibre, ela acomete frequentemente as artérias coronárias, sendo responsável, muitas vezes, pelo desenvolvimento de aneurismas da artéria coronária, levando, frequentemente, à morte súbita.

Já a DK incompleta, além de ser mais comum em crianças com menos de 6 meses, não preenche todos os critérios diagnósticos da DK completa, sendo diagnosticada pela presença de febre há 5 dias ou mais e 2 ou 3 dos principais achados clínicos citados acima e dos achados laboratoriais sugestivos da doença, como:

  • Elevação da velocidade de hemossedimentação (VHS);
  • Elevação da Proteína C reativa (PCR);
  • Hipoalbuminemia;
  • Anemia;
  • Elevação da alanina aminotransferase (ALT ou TGP);
  • Trombocitose;
  • Leucocitose;
  • Piúria.

Além disso, achados ecocardiográficos de anormalidades nas artérias coronárias também é a base para o diagnóstico da DK incompleta. O eletrocardiograma tanto pode ser normal como pode mostrar arritmias, prolongamento do intervalo PR ou alterações não específicas no segmento ST e na onda T. Assim, devem ser realizados ecocardiogramas seriados no momento do diagnóstico da DK, 1 a 2 semanas após o início da doença e 5 a 6 semanas após o início da doença para a pesquisa de alterações nas artérias coronárias.

Sabe-se que a doença de Kawasaki é dividida em três fases clínicas, a aguda, a subaguda e a de convalescença. A fase aguda dura de 1 a 2 semanas e corresponde ao surgimento da febre e dos demais critérios diagnósticos, além de alguns achados associados, como meningite asséptica, miocardite, derrame pericárdico, diarreia, disfunção hepática, uveíte e artrite e/ou artralgia. Já a fase subaguda se inicia 1 ou 2 semanas após o início da doença e dura em torno de 4 semanas, quando a febre, a linfadenopatia e o rash cutâneo cessam. Nessa fase há o aparecimento de irritabilidade, anorexia e da conjuntivite, podendo ocorrer a descamação periungueal, trombocitose, a formação de aneurismas coronarianos e, consequentemente, há um aumento no risco de morte súbita. Em poucos casos podem ocorrer o surgimento de complicações neurológicas, como paralisia do nervo facial, ataxia, encefalopatia, hemiplegia e infarto cerebral. Por fim, há a fase de convalescença, que começa com o desaparecimento dos sinais clínicos, se estendendo até a normalização do VHS, em geral 6 a 8 semanas após o início da doença.

Vale lembrar que, por ser uma doença que raramente acomete adultos, os critérios diagnósticos foram estabelecidos para crianças, não sendo validados para adultos, apesar de serem utilizados na prática clínica.

Fonte: Kawasaki disease: A search for answers

Tratamento

O tratamento da doença de Kawasaki na fase aguda tem como objetivo reduzir a resposta inflamatória na parede das artérias coronárias e, consequentemente, prevenir a vasculite e suas consequências, como os aneurismas e a trombose. Já na fase subaguda e de convalescença, o tratamento visa prevenir complicações como isquemia miocárdica e infarto.

O tratamento da DK se baseia no uso de imunoglobulina intravenosa (IGIV) e de aspirina.

A imunoglobulina intravenosa é utilizada na fase aguda da doença para diminuir a prevalência de alterações das artérias coronárias e para reduzir a duração dos sintomas, tendo demonstrado maior benefício quando administrada nos primeiros 10 dias após o início da febre. A dose padrão da IGIV é de 2 g/kg em infusão única, por um período de 10 a 12 horas, devendo-se associar o ácido acetilsalicílico (AAS ou aspirina) na dose de 80 a 100 mg/kg (dose considerada alta). Alguns dos possíveis efeitos colaterais da IGIV são: cefaleia, febre, calafrios e hipotensão, além de algumas alterações transitórias, que também podem surgir, como leucopenia, neutropenia ou proteinúria. Outro ponto importante a ser citado é com relação à vacinação com vírus atenuado, como as de sarampo, rubéola, caxumba e varicela, que devem ser prorrogadas por 11 meses após a administração da IGIV, devido à redução da imunogenicidade (ou seja, da capacidade de a vacina provocar uma resposta imune) pelos anticorpos passivos do medicamento.

Com relação à aspirina, seu uso ainda tem sido questionado, mas a maioria dos especialistas a utiliza como parte do regime de tratamento. Em altas doses, ela possui efeito anti-inflamatório e, em baixas doses, ela inibe a agregação plaquetária em pacientes com doença de Kawasaki. Assim, como já dito, na fase aguda a aspirina é usada na dose de 80 a 100 mg/kg por dia, dividida em 4 tomadas diárias, para potencializar o efeito anti-inflamatório da IGIV, mas ela não auxilia na redução de alterações coronarianas. Com relação ao tempo de uso da aspirina, depende muito do centro hospitalar, podendo ser mantido por 14 dias em altas doses (estendendo o uso por mais 48 ou 72 horas depois que a febre cessar) ou com redução da dose após 48 a 72 horas sem febre. Posteriormente, deve-se diminuir a dose para 3 a 5 mg/kg por dia, sendo mantida por 6 a 8 semanas a partir do início da doença. Já nos casos de crianças com alterações cardíacas, o uso da aspirina deve ser mantido indefinidamente. Por fim, pacientes que se encontram em uso prolongado de aspirina em baixas doses devem receber uma vacina anual para prevenir gripe e também vacina contra varicela, pela possibilidade de desenvolver síndrome de Reye.

Há casos em que o paciente não responde ao tratamento inicial com IGIV e aspirina, que é a chamada Kawasaki refratária. Nesses casos pode-se administrar corticosteroides, apesar de os resultados após seu uso ainda se mostrarem controversos.

Doença de Kawasaki e o novo coronavírus

Durante a pandemia causada pelo SARS-CoV-2, iniciada no final do ano de 2019, muitas incertezas surgiram e, com elas, o desenvolvimento de estudos e novas descobertas.

Nos últimos 20 anos, já havia sido sugerido que os vírus da família dos coronavírus possivelmente estavam relacionados à patogênese da doença de Kawasaki. Assim, apesar da baixa porcentagem de crianças acometidas pelo novo coronavírus com sintomatologia grave, foi observado, durante a pandemia, um aumento nos casos de crianças e adolescentes com sintomas semelhantes aos da doença de Kawasaki, o que sugere que o SARS-CoV-2, cepa de alta virulência, pode representar um desencadeador da doença, sendo capaz de provocar uma resposta imune poderosa no hospedeiro.

Em Bérgamo, na Itália, por exemplo, um estudo observou um aumento de 30 vezes na incidência da doença de Kawasaki e a maioria das crianças diagnosticadas apresentavam evidências de resposta imune ao vírus SARS-CoV-2. Nesse mesmo estudo, publicado pela revista The Lancet, foi analisado que as características clínicas e bioquímicas dos pacientes com DK diagnosticados durante a pandemia pareciam diferir daqueles diagnosticados antes da pandemia, sendo, portanto, esses pacientes classificados como doença do tipo Kawasaki (Kawasaki-like). Pacientes com a doença do tipo Kawasaki, diagnosticados durante a pandemia, por exemplo, eram mais velhos do que a faixa etária acometida habitualmente, apresentando envolvimento respiratório e gastrointestinal, sinais meníngeos e sinais de envolvimento cardiovascular, além de leucopenia com linfopenia acentuada, trombocitopenia, aumento de ferritina e presença de marcadores de miocardite. Essas características se assemelham às de pacientes com COVID-19. Além disso, pacientes com sorologia positiva para o novo coronavírus apresentaram doença do tipo Kawasaki mais grave, com resistência à IGIV e necessidade de esteroides adjuvantes.

Além disso, a positividade dos anticorpos IgG, nos pacientes com doença do tipo Kawasaki, sugere um início tardio da doença se comparado à infecção primária, devido à resposta imune do hospedeiro, o que apoia a hipótese de que a resposta imune ao SARS-CoV-2 pode ser responsável por uma doença do tipo Kawasaki em pacientes suscetíveis.

Apesar dessa possibilidade, ainda há muitas limitações e poucos estudos sobre o assunto, o que torna essencial a realização de mais investigações e análises pois, apesar de rara, a doença de Kawasaki pode apresentar um curso mais grave se precedida de contaminação pelo COVID-19, podendo, inclusive, chegar a desenvolver a síndrome do choque tóxico ou a síndrome de ativação macrofágica (SAM), complicações graves e potencialmente fatais.

Conclusão

A doença de Kawasaki é uma vasculite sistêmica generalizada rara, tendo seu diagnóstico dado, muitas vezes, de forma tardia, sendo comumente confundida com outras afecções, o que pode ser muito prejudicial ao paciente pelo risco de alterações cardiovasculares caso o tratamento não seja iniciado precocemente. Pela sua possibilidade de acometer outros órgãos, principalmente o coração, tendo alto risco de desenvolvimento de aneurisma da artéria coronária e até mesmo morte súbita, a compreensão dessa doença, sua epidemiologia e clínica torna-se essencial, visto que o início precoce do tratamento visa justamente a prevenção dessas alterações cardíacas graves.

Ainda não se sabe ao certo qual a causa da DK, mas acredita-se haver uma associação com infecções virais em crianças com alguma predisposição genética. Assim, houve, durante a pandemia da COVID-19, um aumento considerável nos casos de crianças com sintomas semelhantes a DK, tendo sido classificada como doença do tipo Kawasaki, ou Kawasaki-like, o que abriu espaço para o desenvolvimento de vários estudos sobre o vírus na população pediátrica, mesmo com o baixo número de casos do novo coronavírus nessa população. Apesar disso, novos estudos ainda são necessários para uma melhor compreensão dessa possível relação.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

Kawasaki Disease: https://emedicine.medscape.com/article/965367-overview#a1

Doença de Kawasaki: https://www.scielo.br/pdf/abd/v84n4/v84n04a02.pdf

Kawasaki Disease: https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/kawasaki-disease/symptoms-causes/syc-20354598

Doença de Kawasaki: A importância do seu reconhecimento precoce: https://cdn.publisher.gn1.link/residenciapediatrica.com.br/pdf/v9n3a05.pdf

An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(20)31103-X.pdf

Kawasaki and COVID-19 disease in children: a systematic review: https://www.scielo.br/pdf/ramb/v66s2/1806-9282-ramb-66-s2-136.pdf