A Diretriz sobre Abuso e Dependências de Múltiplas Drogas faz parte do Projeto Diretrizes, é de autoria a Associação Brasileira de Psiquiatria e foi criada em 15 de outubro de 2012, por meio de uma extensa revisão sistemática. Tem como finalidade auxiliar o médico que faz atendimento primário a reconhecer, orientar e tratar o usuário de múltiplas drogas.
A frequência de uso de múltiplas drogas psicotrópicas por um único indivíduo na prática clínica é elevada. A associação de diversas substâncias pode estar relacionada à variados fatores biopsicossociais, como exacerbação de sensações prazerosas, alienação da realidade e aceitação em determinados contextos sociais.
A identificação do uso de múltiplas drogas pelos profissionais de saúde é imprescindível, uma vez que apenas dessa maneira será possível adotar medidas terapêuticas de caráter emergencial e estabelecer um plano de tratamento específico para as consequências dos variados padrões dessa condição.
Epidemiologia/Etiologia
O uso de drogas psicotrópicas geralmente tem início na adolescência, com o fenômeno de experimentação, sendo as primeiras drogas utilizadas as lícitas, como álcool e tabaco, com a idade mínima estimada para iniciação de 15 anos.
Os estudos indicam que a variação envolvida na evolução do uso experimental para abuso e dependência de substâncias lícitas e ilícitas fica entre 10% e 30%. Essa progressão está associada a diversos fatores, incluindo a pressão externa por grupo social, incentivo ao uso de drogas, envolvimento no tráfico. Destaca-se a influência nos usuários mais jovens (> 30 anos), que já fazem a utilização de tabaco e álcool, e iniciam o uso de maconha ou cocaína aspirada.
É importante ressaltar que os distúrbios associados ao uso de substâncias são comuns. A prevalência de síndromes ao longo da vida, incluindo alcoolismo, é superior a 20% entre os homens e de cerca de 15% entre as mulheres, sendo os jovens e indivíduos de meia-idade os grupos mais impactados.
As características individuais do usuário, como estado de saúde, aspectos genéticos, existência de tolerância, da mesma maneira que aspectos sociais, como desemprego, instabilidade familiar, e fatores econômicos, como alterações no poder aquisitivo, contribuem de forma significativa para o uso de diferentes substâncias. As mais comumente associadas álcool, cocaína, cannabis e crack.
A utilização de múltiplas drogas psicotrópicas, tanto em jovens como em adultos, é um fator que indica maior gravidade e maior chance de desenvolvimento de dependência. Diversos estudos demonstram que esse abuso pode piorar condições médicas já existentes, além de mimetizar transtornos psiquiátricos, e causar impactos próprios e perigosos, como nos casos de superdosagem.
Fisiopatologia
A fisiopatologia se dá pelo princípio de que todas as drogas se ligam à um ou mais receptores proteicos encefálicos, causando modificações em diversos aspectos da liberação e modulação de neurotransmissores. Como consequência são percebidas alterações nas sensações e comportamentos, que diferem em diferentes graus da sobriedade. É importante ressaltar que esse efeitos reforçam o uso em quesitos emocionais e cognitivos.
O uso regular de uma, ou mais drogas proporcionam um efeito de destaque no papel da dopamina, o principal neurotransmissor do circuito de recompensa, além de culminar num comportamento futuro de procura compulsória pela substância em questão. Outro ponto ainda em estudo é a sensibilização dos receptores cerebrais, evidente em pesquisas com animais, que levam à busca de dosagens maiores da droga a cada nova utilização.
No estudo em humanos realizado por Koob e Volkow, a compulsão pela procura de drogas, a perda de controle na limitação da ingesta e o estado emocional negativo, são os três pilares para formação do vício. Sendo que a impulsividade domina os padrões iniciais, e a compulsividade os padrões tardios desse circuito, além de se associarem ao comprometimento da função cortical pré-frontal.
Alterações morfológicas também podem ser observadas, uma vez que a intoxicação está associada a mudanças nos padrões de dopamina no corpo estriado ventral (Padrão de reforço), assim como alterações no corpo estriado dorsal (Padrão de hábito). Já o estado emocional negativo relaciona-se à ativação da amígdala estendida, por meio de modificações com o fator liberador de corticotropina (CRF), noradrenalina e dinorfina. Ainda há o estágio final, associado à amígdala basolateral e ao hipocampo. Todos os estágios dependem do controle executivo do córtex pré-frontal.
Abordagem inicial
O abuso e dependência de drogas é comumente estereotipado e associado à alguns grupos específicos, como moradores em situação de rua. Entretanto esse comportamento deve ser evitado pelo clínico, uma vez que muitos usuários possuem vidas aparentemente saudáveis, estruturadas e produtivas.
A abordagem inicial deve ser iniciada com foco na dificuldade em determinados padrões da vida do paciente, simultaneamente à sondagem da utilização de substâncias que possam ter contribuído para tal situação. Sempre que possível reunir informações adicionais do próprio usuário, assim como familiares ou pessoas de convívio próximo.
É substancial comprovar o padrão de um, ou mais, problemas associados ao uso de drogas, para isso os critérios de avaliação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) devem ser utilizados. Tal abordagem deve incluir perguntas gerais sobre problemas de relacionamento, comprometimento do trabalho ou estudo, acidentes repetitivos e problemas legais.
A etapa seguinte consiste na avaliação clínica de sinais e sintomas psiquiátricos, atentando-se à padrões patológicos inconstante, e aos principais sintomas de abstinência, como tremores, sudorese excessiva, agitação psicomotora, nervosismo, insônia e irritabilidade. Além disso a aplicação de questionários de auto avaliação mostram-se eficazes. O Drug Abuse Screening Test (DAST) é um teste de fácil utilização, boa especificidade e sensibilidade e consiste em um conjunto de vinte questões objetivas, de resposta “sim” ou “não”, que dura cerca de cinco minutos.
Diagnóstico do Abuso e Dependência de Múltiplas Drogas
A associação de drogas em um mesmo episódio de consumo, com potencialização da experiência ou compensação de efeitos negativos, ou substituição da droga de preferência e indisponível, identificam os grupos de abuso e dependência de múltiplas drogas em dois padrões de uso, que possuirão diferentes abordagens: Poliuso simultâneo e Poliuso alternado.
Poliuso simultâneo
Caracterizado pelo uso de duas ou mais drogas psicotrópicas em um intervalo de tempo curto o suficiente para que haja interação entre os diferentes efeitos psicoativos. Sendo possível que o efeito das drogas se atenuem ou se intensifiquem.
Poliuso alternado
Caracterizado pelo uso de substâncias em padrão irregular e intermitente, sendo intercaladas por períodos de uso intenso e períodos de uso brando, ou abstinência. Nesse caso não há a interação entre os efeitos psicoativos, e é associado ao histórico de uso de uma droga específica pelo indivíduo por escolha, embora haja uso esporádico de outras, de acordo com situação social e disponibilidade.
Diagnóstico laboratorial
O diagnóstico laboratorial possui um papel limitado na identificação do abuso e dependência de drogas, uma vez que a maioria das triagens são feitas por amostras de urina, identificando apenas consumo recente, e o resultado poderá ser negativo caso o paciente esteja em um curto período de abstinência.
Classificação quanto à gravidade
A classificação quanto à gravidade se dá pela avaliação da necessidade crescente do consumo de uma substância para chegar ao mesmo efeito inicial, dos efeitos decrescentes com o uso contínuo da mesma quantia da substância, dos sintomas de abstinência e da utilização de substância para aliviar sintoma de abstinência. Sendo que a presença de dois a três desses sintomas, associados a um padrão problemático de uso por um período de doze meses constitui um transtono leve, quatro cinco sintomas, um transtorno moderado e seis ou mais um transtorno grave.
Comorbidades associadas
Cerca de um terço da população usuária de drogas psicotrópicas apresenta comorbidades psiquiátricas. Muitas vezes é difícil de identificar e tratar, piorando a evolução tanto do transtorno primário como do relacionado ao uso e dependência de drogas. Nos indivíduos poliusuários a situação se acentua.
Em torno de 80% dos indivíduos dependentes de álcool, com menos de trinta anos, apresentam comorbidade psiquiátrica, incluindo a utilização de outras drogas e transtorno depressivo maior. Já em adolescentes a existência de transtorno de humor, ansiedade e transtornos disruptivos, frequentemente se associam à utilização de múltiplas substâncias.
O abuso e dependência de múltiplas drogas está constantemente associado ao transtorno de humor bipolar, com alguns fatores de risco específicos, por exemplo sexo masculino, idade precoce de diagnóstico e história familiar. Outro transtorno comumente relacionado à essa dependência é o depressivo, que dificulta o tratamento e aumenta as chances de suicídio.
Já os pacientes esquizofrênicos apresentam maior uso de múltiplas drogas quando comparados com a população geral, sendo o sexo masculino o mais afetado nesses casos. A utilização de cocaína e álcool relaciona-se com o maior número de internações nos hospitais especializados.
Outro grupo com prevalência do abuso de diferentes drogas maior do que a população geral é o de adultos com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Além disso a experimentação de diferentes substâncias é maior. No que diz respeito aos pacientes com transtorno de personalidade borderline (TPB) e antissocial (TPA) os índices de poliuso são bem maiores do que na população geral, chegando a 76% no TBP e 95% no TPA.
Tratamento/Condutas de Abuso e Dependência de Múltiplas Drogas
O tratamento se inicia com a investigação aprofundada dos fatores desencadeadores ou atenuadores do consumo combinado; avaliação de possíveis prejuízos cognitivos para planejar intervenção; escolha da farmacoterapia de desintoxicação, da síndrome de abstinência e manutenção, em função do maior risco de internação dos poliusuários; necessidade de avaliação clínica e psiquiátrica completa para pesquisa de complicações frequentes. Dessa forma é possível minimizar o prognóstico ruim e o abandono do tratamento.
Os princípios utilizados no tratamento de dependência de uma droga especifica devem ser mantidos, com atenção redobrada para o diagnóstico diferencial e planejamento de um tratamento individual. Levando em consideração que a desintoxicação de múltiplas drogas tem síndrome de abstinência mais complexa do que em usuários de uma única substância.
É importante destacar que muitos pacientes não estão preparados para admitir a necessidade de intervenção, e por isso é necessário que o médico seja empático e tente fortalecer o vínculo. Quando necessário, diversas tentativas devem ser feitas para tentar conscientizar o usuário de sua condição, por exemplo o uso da entrevista emocional e sessões educativas/diagnósticas.
Na emergência
Existe maior risco de intoxicação e overdose entre poliusuários, sendo que nas salas de emergência a cocaína é responsável pelas maiores taxas de admissão, principalmente em associação com álcool. É importante observar pacientes admitidos pela associação de álcool à sedativos, hipnóticos, ansiolíticos, MDMA e outros estimulantes, devido às complicações mais severas.
Na superdosagem de estimulante, como anfetaminas ou cocaína, que podem produzir alterações cardiovasculares, queda da temperatura e convulsões, o tratamento inclui administração de líquidos IV, e em alguns casos benzodiazepínicos IV, para controle de sintomas.
Já na superdosagem de opiáceos, observa-se quedas da frequência respiratória, cardíaca e pressão arterial, apresentando um risco iminente e prejudicial à vida. Deve-se utilizar medidas de suporte e reversão dos efeitos pela Naloxona IV ou IM.
No que diz respeito a benzodiazepínicos, os pacientes devem utilizar medidas de suporte geral. Outras substâncias como Canabinoides, são menos propensas à superdosagem e deve-se estabelecer um tratamento físico e direto.
Durante a hospitalização
Durante a hospitalização é fundamental o acompanhamento multidisciplinar psiquiátrico e psicológico, oferecendo suporte emocional ao paciente. Uma vez que o estado pós intoxicação e de abstinência podem levar o paciente a estados depressivos graves, suicídio, ansiedade e, em alguns casos, alucinações.
Prevenção
Ainda não há consenso em relação às diferenças de resultados de tratamentos entre as diferenças substâncias psicoativas. De modo geral, os serviços de intervenção para mono e poliusuários e dependentes não diferem, e incluem abordagens farmacológica e psicossociais. É importante identificar os fatores desencadeadores de uso para que abordagens preventivas sejam adotadas e evitem a recaída.
A abordagem de prevenção da recaída com identificação e intervenção nos eventos ou situações de risco ajudam na abordagem da situação. O manejo do policonsumo de drogas psicotrópicas apresenta um desafio complexo para profissionais, usuário e familiares, e deve-se levar em consideração que é um processo lento e que exige apoio.
O que muda no dia seguinte
A diretriz à respeito do abuso e dependência de múltiplas drogas evidencia a importância dos fatores biopsicossociais no desenvolvimento desse quadro. Além disso é reforçado o conceito de que poliusuários possuem um prognóstico pior do que monousuários, entretanto medidas farmacológicas e terapias multiprofissionais demonstram um impacto positivo na recuperação e reinserção desses pacientes em seus contextos sociais.
Autores, revisores e orientadores:
Autor(a): Gabrielle Ferreira – @gabrielle.ifs
Revisor(a): Iandy Tarecone de Souza Mateus – @sagi.tari
Orientador(a): Fátima Vasconcellos
O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.
Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.
Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.
Referências:
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5™. 5 ed, 2013.
Associação Brasileira de Psiquiatria. Abuso e Dependência de Múltiplas Drogas. Projeto Diretrizes (Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina). Elaboração Final: 15 de outubro de 2012.
MUNRO, C.A., McCaul E, Oswald M, et al. Stiatal dopamine release and family history of alcoholism. Alcohol Clin Exp Res 2006;30:1143–51.
MOELLER, F.G., Barratt ES, Dougherty DM, et al. Psychiatric aspects of impulsivity. Am J Psychiatry 2001;158:1783–93.



