Carreira em Medicina

Casos Clínicos: AUTISMO

Casos Clínicos: AUTISMO

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História clínica

HTKR, 1 ano e 5 meses, sexo masculino, branco, natural e procedente de cidade do interior, procurou atendimento na neuropediatria com queixa de “atraso de fala e dificuldade de interação”. Veio encaminhado pela psicopedagogia. Aos 17 meses não fala nenhuma palavra, somente balbucia. Não responde quando chamado pelo nome e apresenta interação pobre com outras crianças e adultos. Consegue realizar movimentos de empilhar, mandar beijos e dar tchau, mas não realiza essas competências dentro de atividades de interação social. Extrema agitação reacional a sons fortes. Sem queixas de sono ou alimentação.

Tio paterno, quando da mesma idade, apresentou comportamento semelhante, sem déficits sociais atuais. Tia paterna tem diagnóstico de epilepsia (crises atônicas). Mãe, GIPIA0, teve contrações ao longo da gestação, placenta baixa e diabetes gestacional. Nega uso de medicamentos controlados na gestação. Nasceu com 35 semanas, aspirou líquido amniótico, ficou 3 dias na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. PN: 2700 g. Desde os 4 meses apresenta padrão de cianose perilabial e tremor, internado em UTI Pediátrica para investigação; diagnóstico inicial de refluxo gastroesofágico. Com 5 meses de vida, novo episódio, investigação com Ressonância Nuclear Magnética, mostrando uma imagem sugestiva de cisto aracnóideo temporal esquerdo com 0,7 cm de diâmetro (figura 1) e Eletroencefalograma normal. Sorriso social com 2-3 meses, sentou com 6 a 7 meses, ficou de pé com 9 meses e andou com 11 meses. No momento, balbucios evoluindo para lalação.

Solicitados nova neuroimagem e eletroencefalograma. Com 18 meses, EEG normal e nova Ressonância Nuclear Magnética de Crânio com alteração do padrão da lesão anterior, sugerindo agora uma lesão neoplásica primária (figura 2). Novas crises com cianose perilabial e alteração de consciência; iniciado anticonvulsivante. Encaminhado para neurocirurgia. Aos 2 anos e 2 meses, é submetido à retirada cirúrgica da lesão, cujo histopatológico evidenciou Glioma Angiocêntrico (OMS Grau I) com Esclerose Hipocampal. Desde a cirurgia está em uso regular de anticonvulsivante, sem novas crises e grandes progressos no desenvolvimento neuropsicomotor.

Exame físico

Sinais vitais: FC: 100 bpm; FR: 30 irpm; Temperatura: 36,6°C; PC: 49,5 cm.

Geral: lactente em bom estado geral, corado, hidratado, acianótico e anictérico. Comportamento agitado no consultório, dificuldade na interação com examinador, pouco colaborativo.

Pulmonar: tórax atípico, eupneico em ar ambiente, sem esforço respiratório e com expansibilidade preservada bilateralmente. Frêmito toracovocal uniformemente palpável bilateralmente. Som claro atimpânico à percussão. Murmúrio vesicular universalmente audível, sem ruídos adventícios.

Cardíaco: ritmo cardíaco regular em dois tempos com bulhas normofonéticas. Ausência de sopros ou turgência jugular.

Abdome: abdome plano, indolor à palpação superficial e profunda. Sem massas ou visceromegalias. Peristalse presente.

Pele e anexos: ausência de manchas, lesões cutâneas ou nodulações.

Exame neurológico: equilíbrio e tônus normais, força 5/5 (MRC) em membros inferiores e superiores, pares cranianos sem anormalidades. Ausência de movimentos anormais ao exame. Reflexos profundos presentes, normais e simétricos.

Exames complementares

Ressonância Nuclear Magnética de crânio:

Figura 1. Imagem cística em lobo temporal esquerdo com 0,7 cm de diâmetro.
Figura 2. Imagem com novo padrão da lesão inicial, 13 meses depois.

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1. É possível realizar diagnóstico de TEA no lactente?

2. Quais os principais diagnósticos diferenciais de TEA no lactente/pré-escolar?

3. Com base na história e exame clínico, era necessário repetir a neuroimagem e EEG?

4. O EEG normal afasta o diagnóstico de epilepsia?

Discussão

O Transtorno do Espectro do Autista (TEA) é o termo recentemente implementado pelo Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5) que engloba uma classe de condições neurodesenvolvimentais semelhantes, envolvendo características como déficits de interação social e comunicação, além de padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados.1,2 Dificuldades no desenvolvimento social são os indicadores mais prováveis de um futuro diagnóstico de autismo. Entretanto, o atraso da fala parece ser o motivo que mais mobiliza os pais na busca por assistência.1

O diagnóstico é essencialmente clínico, feito a partir da observação da criança, entrevista com os pais e aplicação de instrumentos específicos. Conforme os critérios diagnósticos do DSM-5, as primeiras manifestações do TEA devem aparecer antes dos 36 meses de idade. 1,2Entretanto, quanto mais nova for a criança, mais inespecíficos são os sinais de problemas de desenvolvimento.3

Dos indicadores de desenvolvimentos e sinais de alertas para TEA, espera- -se de uma criança aos 17 meses que fale as primeiras palavras e frases e aponte para objetos de seu interesse, entre outros aspectos, que não acontecem com essa criança. O diagnóstico pode ser suspeitado a partir desses sinais nos dois primeiros anos de vida, e, mesmo sem confirmação, a intervenção precoce deve ser instituída.4

Destaca-se nesse caso a dificuldade no comportamento social, em especial na habilidade de Atenção Compartilhada (AC), que se refere à capacidade humana para coordenar a atenção social (alternância do olhar e outros sinais comunicativos) com os outros e/ou com objetos/eventos nas interações sociais. Pode ser observada nos primeiros anos de vida e é fundamental para o diagnóstico diferencial.5

Os critérios A e B são características essenciais do transtorno do espectro autista e os prejuízos na comunicação e na interação social são pervasivos e sustentados.

Além da alteração do neurodesenvolvimento, esse paciente também apresentava crises de cianose perilabial e tremores desde os 4 meses de vida. Para investigação desses sinais e sintomas, é importante a obtenção de uma história detalhada e de um exame físico geral, com ênfase nas áreas neurológica e psiquiátrica. Além disso, exames complementares são necessários, como a eletroencefalografia (EEG). Ressonância magnética (RM) do encéfalo e tomografia computadorizada de crânio devem ser solicitados na suspeita de causas estruturais.6

O paciente realizou uma RM aos cinco meses de idade, na qual foi identificado um cisto aracnoide e EEG normal. Apesar do EEG normal, isso não afasta o diagnóstico de epilepsia, tanto pela imaturidade cerebral quanto pela história clínica que corrobora. Cabe ressaltar que as crises epiléticas em neonatos e lactentes podem se manifestar de maneiras muito discretas, podendo passar despercebidas pelos pais.7

É importante avaliar e investigar crises e síndromes epilépticas referentes a essa fase da vida. A partir dos três meses têm-se duas importantes síndromes epilépticas benignas, representadas pela epilepsia mioclônica benigna do lactente e pela convulsão febril benigna. Por outro lado, há um grupo de síndromes epilépticas com difícil controle medicamentoso que provoca atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, entre elas a síndrome de Ohtahara, a epilepsia mioclônica severa e a síndrome de West.8

No caso foi importante realizar uma segunda RM para acompanhar a evolução da lesão e continuar a investigação, uma vez que o lactente continuava com os sintomas. Nesse segundo exame foi identificado aumento da lesão, que revelou, pelo estudo histopatológico, ser um glioma angiocêntrico.

Trata-se de um tumor glial epileptogênico, raro, identificado pela primeira vez em 20059 , tendo somente 56 casos reportados até 2015 de acordo com estudos.10 A conduta é a remoção total curativa que frequentemente acaba com as crises de epilepsia.9

A evolução desse paciente foi muito satisfatória após a cirurgia. Permanece o questionamento se esse glioma raro, que acomete principalmente crianças e jovens,poderia causar um atraso no neurodesenvolvimento, pois faltam estudos e trabalhos nesse sentido. O que está definido até agora é que se trata de uma patologia pediátrica que cursa, na maioria dos os casos, com epilepsia refratária.10

Diagnósticos diferenciais principais

Objetivos de aprendizado/ competências

• Discutir os diagnósticos diferenciais do TEA;

• Observar os critérios de confirmação diagnóstica pelo DSM-V;

• Analisar os diagnósticos diferenciais dos atrasos de desenvolvimento primários e secundários.

Pontos importantes

• Atraso no desenvolvimento em crianças notado pelos pais é sinal de alerta para avaliação do neurodesenvolvimento por uma equipe multidisciplinar.

• Crises epiléticas em lactentes são diagnosticadas por uma história clínica detalhada e devem ser investigadas quanto a sua origem.

• Lesões cerebrais achadas em exames de imagem devem ser avaliadas periodicamente.

• TEA é um diagnóstico complexo, difícil nos primeiros anos de vida, mas as crianças se beneficiam com tratamento precoce.

• O médico deve sempre estar atualizado quanto a novos conceitos e doenças, sempre realizando pesquisas para aprimorar seu conhecimento.