Carreira em Medicina

Casos Clínicos: Apendicite Aguda

Casos Clínicos: Apendicite Aguda

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História clínica

D.J.B., 10 anos, sexo masculino, branco, procurou atendimento acompanhado de sua irmã apresentando como queixas principais: “dor na barriga e febre”. Ao ser admitido no hospital universitário, apresentava quadro de dor, que havia iniciado há cinco dias na região periumbilical, e no momento irradiava em direção à fossa ilíaca direita. Essa dor apresentavase de forma contínua com característica de cólicas, com alívio em posição de cócoras e piora com movimentação. Aconteceu, ainda, parada na eliminação de fezes e flatos há dois dias. Irmã relata que o paciente havia apresentado dificuldade de alimentação devido à inapetência. Além disso, apresentou episódios de febre de 38ºC a 42ºC.

Nega vômitos, enterorragia, melena e alteração urinária. Não há histórico familiar de câncer de cólon, divertículo de Meckel, doença inflamatória intestinal (DII) e diabetes mellitus. Nega quadro semelhante anterior, doenças prévias, cirurgias, alergias ou hemotranfusões.

Exame físico

Geral: Paciente em regular estado geral; lúcido; hipocorado (2+/4+); desidratado (2+/4+); acianótico; perfusão capilar periférica satisfatória.

Sinais vitais: FC: 128 bpm; FR: 20 irpm; Temperatura: 39ºC.

Neurológico: Crânio normocéfalo. Ausência de lesões de pele. Implantação de olhos, nariz e orelhas normais. Pupilas isocóricas e fotorreagentes. Reflexo fotomotor direto e consensual preservados. Ausência de déficits cognitivos. Ausência de disdiadococinesia, disartria, dismetria, ataxia e tremores às manobras de coordenação.

Pulmonar: Tórax típico, eupneico, sem esforço respiratório, expansibilidade preservada bilateralmente. Múrmurio vesicular universalmente audível sem ruídos adventícios.

Cardíaco: Precórdio normodinâmico. Ausência de atritos. RCR 2T com BNF. Pulsos arteriais periféricos simétricos, sincrônicos e com boa amplitude.

Abdome: Sinal Blumberg e de Rovsing positivos. Ruídos hidroaéreos diminuindo difusamente, dor à palpação profunda em flancos, mais intensamente na região periumbilical e fossas ilíacas.

Exames complementares

Figura 1. RX de abdome revelando alça sentinela e apagamento da linha do músculo psoas.

QUESTÕES PARA ORIENTAR A DISCUSSÃO

1. Com base no exame clínico, qual a principal hipótese diagnóstica?

2. Qual a relevância dos sinais de Blumberg e Rovsing positivos?

3. Quais exames devem ser solicitados?

4. Qual a conduta apropriada?

5. Quais os principais diagnósticos diferenciais?

Discussão

As queixas do paciente incluem sinais clássicos que nos fazem suspeitar de apendicite aguda. Apendicite é um processo inflamatório agudo do apêndice vermiforme e é a causa mais frequente de abdome agudo cirúrgico5 . O que destaca a relevância deste caso, sendo necessário que médicos das mais diversas especialidades, incluindo generalistas, pediatras e cirurgiões estejam aptos a diagnosticá-la.

Sua etiologia ainda não é completamente compreendida. A principal tese, porém, defende que devido a uma obstrução da saída, que pode ser causada por fecalitos, corpos estranhos, cálculo biliar, tumor, parasitas, entre outros, cause um aumento da pressão intralumial, distendendo o órgão ao ponto de comprometer a drenagem sanguínea. O conteúdo intraluminal em estase e os danos isquêmicos propiciam alta proliferação de bactérias, que induzem intensa resposta inflamatória6 . Também existem estudos que sugerem a participação de fatores genéticos, pois, mesmo sem identificar um gene causador, demonstram risco aproximadamente três vezes maior de apendicite aguda em membros de família com história familiar positiva7 .

Em alguns casos, pode haver perfuração, sendo risco de perfuração maior em pacientes nos extremos de idade (menor do que 5 e maior do que 65 anos de idade). Com o órgão em isquemia, a mucosa fica hipóxica, começa a apresentar úlceras e atinge a serosa, que origina a dor peritoneal. Se o quadro não for revertido nesse momento, a inflamação culmina em gangrena e perfuração, aumentando a peritonite de forma progressiva, que pode ser contida por abscessos ou tornar-se generalizada6 . Dessa maneira, a apendicite aguda pode ser classificada, de acordo com aspecto macroscópico na abordagem cirúrgica, em:

• Simples ou focal: apêndice edemaciado, mucosa com úlceras e pus no lúmen do órgão.

• Supurativa: congestão vascular, petéquias, aumento do volume peritoneal e migração do omento para o local.

• Gangrenosa: necrose, microperfurações ou rompimento total do apêndice, peritonite (secreção purulenta na cavidade peritoneal).

Apesar de os sinais clínicos da apendicite aguda dependerem da localização do órgão e do momento em que o paciente procura assistência médica, a apresentação clínica clássica da apendicite aguda começa com um quadro de anorexia seguido de dor abdominal mal definida referida no mesogástrio ou na região periumbilical, assim como o caso apresentado em que o paciente iniciou a dor dessa forma há cinco dias. Ela se deve por consequência da mediação por fibras nervosas autônomas. É válido ressaltar, porém, que em 25% dos casos referem o início da dor abdominal, de forma já localizada, sem relato de migração4 . A partir de 6 a 12 horas de evolução, começa a ocorrer a migração da dor para o quadrante inferior direito devido ao comprometimento do peritônio parietal vizinho, promovido pela irritação das fibras nervosas somáticas, havendo, a partir de então, a localização clássica na fossa ilíaca direita, onde se localizava a dor no momento do atendimento. A dor pode relacionar-se com anorexia, náuseas e vômitos de baixa intensidade e poucos episódios1 . A ausência de vômitos como no caso não descarta o diagnóstico, estando presente em 50% a 75% dos casos2 . Nesse período, ocorre febre baixa, entre 37,5ºC e 38ºC1 .

Porém, sem tratamento cirúrgico precoce, o quadro geralmente evolui para perfuração, entre 20% a 30% dos casos3 . Quando isso ocorre, a dor torna-se mais acentuada e pode apresentar febre acima de 38ºC e taquicardia, assim como foi descrito pela irmã e visto no exame físico, podendo sugerir perfuração. Em crianças e idosos, geralmente não são encontrados os sintomas clássicos e, por isso, o diagnóstico torna-se difícil nessas faixas etárias, em que uma grande parte procura o atendimento com o apêndice já perfurado5 .

Além dos sintomas típicos, devem ser pesquisados sinais ao exame físico, como o sinal de Blumberg e o sinal de Rovsing, que foram positivos. Dentre esses sinais o que merece atenção é o sinal de Blumberg, pois a dor identificada na fossa ilíaca direita (Ponto de McBurney) é associada à apendicite aguda e o sinal é encontrado em 75% dos casos. Os sinais que podem ser pesquisados são2 :

Sinal de Blumberg: dor na descompressão brusca do abdome.

Sinal de Rovsing: dor na fossa ilíaca direita quando é feita a compressão da fossa ilíaca esquerda.

Sinal de Psoas: durante a flexão da coxa direita o paciente apresenta dor na fossa ilíaca direita.

Sinal do Obturador: ao fletir e abduzir membro inferior direito em decúbito dorsal, paciente apresenta dor em fossa ilíaca direita.

Sinal de Dumphy (peritonite): o paciente sente muita dor ao percutir o abdome ou ao tossir.

Sinal de Kallás: apresenta dor na fossa ilíaca ao bater o calcanhar direito contra o chão em pé, sem sapatos.

Sinal de Lennander: a compressão da fossa ilíaca direita concomitante à elevação ativa do membro inferior direito provoca dor no local inflamado.

Toque retal: palpação de massas ou dor na face anterior e direita do reto.

Apesar de o caso apresentado ter quadro clínico clássico, ele não ocorre em 10% a 30% dos casos. Em algumas situações, o apêndice pode ser retrocecal ou existir um cólon mal rotacionado, originando dor pélvica ou em flanco direito e no quadrante superior direito, respectivamente. A taxa de mortalidade é de aproximadamente 3,3% e está relacionada com o atraso no diagnóstico8 .

Embora os exames de imagem estejam disponíveis em hospitais terciários, muitos diagnósticos de apendicite aguda podem ser realizados somente com base na história e exame físico. O mais importante é termos um alto índice de suspeição, tendo em vista a frequência dessa doença e gravidade de suas complicações. Nesse sentido, Alvarado desenvolveu uma escala para identificar a probabilidade de estarmos diante de um paciente com apendicite aguda, baseada unicamente em achados físicos e no hemograma20.

A conduta modifica de acordo com a pontuação encontrada e com a estrutura da unidade de saúde. Em locais em que exames de imagem — ultrassonografia e tomografia computadorizada — estão disponíveis, são indicadas as seguintes condutas, de acordo com a pontuação:

• Pontuação menor ou igual a três (índice baixo) — quase exclui apendicite aguda (96,2% de achados normais na tomografia computadorizada);

• Pontuação entre quatro e seis pontos (índice intermediário) — a sensibilidade é de 35% de casos positivos para a apendicite.

• Pontuação de sete ou mais (índice alto) — encontramos 78% de casos positivos em mulheres e 94% em homens.

Em locais em que exames de imagem — ultrassonografia e, sobretudo, a tomografia computadorizada — não são disponíveis:

• Pontuação menor ou igual a três — o paciente deve ter alta para casa com instruções para retorno em 12 horas;

• Pontuação entre quatro e seis — devem ser observados — internados;

• Pontuação de sete ou mais — os pacientes podem ser levados à cirurgia, aceitando-se um índice geral de erro diagnóstico entre 10% a 20%, em laparotomias ou laparoscopias brancas — ou não terapêuticas.

A escala de Alvarado pode também ser útil na seleção de pacientes para complementação diagnóstica por tomografia computadorizada, sendo indicada nos casos intermediários (quatro a seis pontos) e dispensável abaixo de três. Dos sete pontos para cima, a TC serve mais para a localização do apêndice do que para firmar um diagnóstico1 . Podemos notar que o relato apresentado pontua 9 na escala de Alvarado, não necessitando, portanto, de exames de imagem, ainda que estes estejam disponíveis no local do diagnóstico. Sendo assim, o hemograma se mostra o exame mais importante, revelando leucocitose entre 10.000 a 18.000 leucócitos e desvio para a esquerda.

Sendo que uma leucometria acima de 18.000 é incomum em apendicite não perfurada1 , o que, além dos achados no exame físico, também favorece para o diagnóstico de perfuração. É preciso lembrar que o EAS pode mostrar alterações, como piócitos e hemácias, em pacientes com apendicite aguda, consequência da inflamação contígua do ureter ou bexiga, quando houver contato próximo do apêndice1 , assim como ocorreu no relato apresentado.

Para uma melhor investigação em casos de dúvida diagnóstica pode-se seguir o seguinte fluxograma presente em protocolo elaborado pela fundação de hospitais de Minas Gerais:

Outros exames complementares, que podem ser solicitados em caso de dúvida diagnóstica, e os achados que sugerem apendicite aguda são2 :

Urina: hematúria.

Leucograma: revelando leucocitose (cerca de 10.000 a 15.000); com neutrofilia e desvio à esquerda.

Ultrassonografia: apresenta aumento do diâmetro do apêndice; líquido livre.

Radiografia simples do abdome: Apresentando acúmulo fecal no ceco, alça sentinela, apagamento segmentar ou total do músculo psoas direito, presença de fecalitos, pneumoperitônio, escoliose antálgica e apagamento da linha do músculo psoas.

Tomografia computadorizada: feita apenas se a apendicite suspeitada não for confirmada pela clínica ou ultrassonografia.

Radiografia simples de tórax: útil para excluir doenças pleuropulmonares.

No Brasil, independente da classificação da apendicite, o tratamento de escolha é cirúrgico e o procedimento de escolha é a apendicectomia precoce. Quando ocorre peritonite localizada, pode-se optar por manejo clínico para melhoras das condições gerais até a cirurgia eletiva ou por apendicectomia com menor manuseio de tecidos. Já na apendicite aguda com abscesso organizado, deve- -se realizar a apendicectomia com aspiração de pus. Na peritonite generalizada, o cirurgião tem que realizar a aspiração intraperitoneal em todo o abdome. Por fim, na apendicite aguda gangrenada, efetua-se a retirada dos tecidos necrosados, aspiração, fechamento do ceco e amputação do coto apendicular8 .

Um preparo pré-operatório deve ser prontamente instituído, com avaliação clínica do paciente, dieta zero, hidratação parenteral e reposição eletrolítica, e introdução de antibióticos no pré-operatório — preferencialmente pelo cirurgião que tomou a decisão operatória. A antibioticoterapia é direcionada à flora bacteriana intestinal com abrangência para germes aeróbios e anaeróbios. As associações de ciprofloxacina com metronidazol, ou ainda de aminoglicosídeo com metronidazol ou clindamicina e ampicilina, ou até da amoxicilina-clavulanato, costumam ser a primeira opção no nosso meio. A primeira dose, feita ainda no pré-operatório, reduz a ocorrência de infecções da ferida operatória, assim como de abscessos intraperitoneais. A duração do tratamento, no entanto, é discutida. Nos casos não complicados, não há evidência de benefício em manter a administração dos antibióticos por mais de 24 horas. Já nos casos de perfuração, necrose ou de abscessos localizados, o tratamento deve ser prolongado até, pelo menos, o paciente permanecer sem febre e com leucograma normal durante 24 horas seguidas1 .

Diagnósticos diferenciais principais

Objetivos de aprendizado/ competências

• Salientar a influência do diagnóstico e tratamento precoce no prognóstico dessa patologia;

• Dispor-se das variáveis técnicas semiológicas empregadas para diagnosticar um quadro de apendicite aguda;

• Diagnósticos diferenciais associados a variações anatômicas e características como faixa etária e gênero;

• Alto índice de suspeição atentando- -se a marcadores clínicos e laboratoriais, uso da “Escala de Alvarado”;

• Entender os eventos patológicos das diversas formas de apresentação da apendicite aguda para interpretar exames complementares úteis no diagnóstico do quadro; uso de exames de imagem;

• O tratamento é essencialmente cirúrgico (apendicectomia) e deve ser realizado precocemente com associação à instituição de um preparo pré-operatório e antibioticoterapia.

Pontos importantes

• A apendicite aguda constitui a emergência cirúrgica mais comum nos casos de abdome agudo de tratamento cirúrgico;

• Consiste em uma infecção polimicrobiana com germes aeróbios e anaeróbios;

• Seu diagnóstico e o tratamento cirúrgico precoce correspondem ao padrão de ouro para o tratamento e influem diretamente no prognóstico dessa patologia;

• A apresentação clínica clássica da apendicite aguda começa com um quadro de anorexia seguido de dor abdominal intensa no mesogástrio, na região periumbilical ou de maneira mal definida, acompanhada de náuseas, vômitos e constipação;

• O ponto de Mc Burney é adotado como localização clássica do “epicentro” da dor nesses pacientes; porém, devido às variações anatômicas de sua localização, esse ponto pode variar;

• O diagnóstico é realizado essencialmente com base na história, exame físico e hemograma;

• Exames de imagens são exames complementares para confirmar a hipótese diagnóstica;

• Teste de Alvarado corresponde a uma escala para identificar a probabilidade de estarmos diante de um paciente com apendicite com base nos achados físicos e no hemograma;

• A apendicite pode ser classificada em simples, supurativa ou gangrenosa;

O sinal semiológico de Blumberg é encontrado em 75% dos casos de apendicite aguda;

• O tratamento cirúrgico consiste basicamente na apendicectomia, drenagem de abscesso e lavagem com soro fisiológico do campo operatório.

Confira o vídeo: