Um Caso Clínico de Emergência sobre Pancreatite Aguda

Imagem de um médico consultando um paciente
Índice

Por meio deste caso clínico, saiba o que fazer com pacientes que apresentam Pancreatite Aguda ao chegar no hospital – sintomas, diagnósticos, exames e tratamento.

Boa leitura!

História Clínica de Pancreatite Aguda

M.O.C, sexo feminino, 40 anos.

Queixa principal: Dor na barriga há 8 horas.

História da moléstia atual

Paciente refere que vinha sentindo um desconforto em todo abdome há cerca de 48 horas.

Porém, nas últimas 8 horas esse desconforto se tornou uma dor intensa  epigástrio/mesogástrio que vem piorando e no momento da consulta está mensurada em 9/10.

Fez uso de dipirona para a dor, não havendo melhora. Relata que durante esse período teve 2 episódios de vômito e vem sentindo náuseas e sudorese desde então. Nega febre, perda de peso e obstipação.

Antecedentes médicos: refere ser hipertensa desde os 20 anos e não fazer o tratamento de forma regular (faz uso de Hidroclorotiazida 25 mg/dia e Sinvastatina 40 mg/dia). Teve um episódio de IAM há 2 anos e faz uso de AAS 100 mg/dia desde então. Nega outras patologias.

Antecedentes familiares: pais faleceram quando era criança. Não possui irmãos.

Hábitos de vida: Possui hábito alimentar rico em alimentos gordurosos e de baixo valor nutricional. Não realiza atividades físicas. Nega tabagismo e elitismo.

Exame físico de Pancreatite Aguda

Geral: Regular estado geral, LOTE, desidratado, taquipneico, bom estado nutricional, mucosas hipocrômicas (++/IV), fácies de dor, paciente em posição antálgica.

Dados vitais: TA: 120×80 mmHg; FR: 27 ipm;  FC: 120 bpm; Peso: 75 kg,  Altura: 1,60, IMC: 29,3 kg/ m2

Pele e fâneros: Pele fria e pálida, sudoreica, sem cianose de extremidades.

Aparelho respiratório: Taquipneico, com padrão de respiração normal. Expansibilidade preservada, som claro pulmonar à percussão em ambos HT, e MV normal com ausência de RA.

Aparelho cardiovascular: Precórdio calmo, sem abaulamentos, não impulsivo. Ictus não visível, presente em 5º EIC na LHC. Bulhas rítmicas, em dois tempos, normofonéticas, sem sopro.

Abdome
Inspeção: Abdome semi-globoso, cicatriz umbilical intrusa, ausência de visceromegalias;
Ausculta: RHA diminuídos;
Percussão: Timpanismo em todo abdome;
Palpação: Abdome doloroso à palpação profunda em epigástrio/ mesogástrio. Sem sinal de descompressão brusca. Sinal de Jobert e Murphy ausentes.

Extremidades: Sem alterações

Exames complementares

Laboratório Clínica FTC

Hemácias: ………………………………………4 milhões/mm³ (VR: 4 a 5,5 milhões/mm³)

Hb: ………………………………………………….10 g/dL (VR: entre 12 e 15g/dL)

Ht:………………………………………………… 33% (VR: entre 35 e 45%)

VCM: …………………………………………….110 fL (VR: 80 – 100 fL)

HCM: ………………………………………………30 pg (VR: 28 – 32 pg)

CHCM: …………………………………………….33 g/dL (VR: 32 – 35 g/dL)

RDW: ………………………………………………14% (VR: 10 – 14%)

Leucograma: ……………………………………..17.000 (VR: 5.000 – 11.000)

Neutrófilo: 5% de bastões (VR: 3- 5%) / Segmentados: 45% (VR: 45-70%)

Plaquetas: 450.000/mm³ (VR: 150.000 – 400.000/mm³)

Laboratório Clínica FTC

  • Amilase: 108 U/L (VR
  • Amilase: 250 U/L ( VR: ate 100 U/L)
  • Lipase: 100 I/L (VR: abaixo de 35 U/L)
  • Na: 130 mEq/L ( 135 a 1145 mEq/L
  • K: 3,2 mEq/L ( 3,5 a 4,3 mEq/L)

Discussão sobre Pancreatite Aguda

1. Qual a principal suspeita diagnóstica?

Principal diagnóstico é Pancreatite aguda secundária a uma litíase biliar.

Pancreatite aguda, que foi definida como um processo inflamatório agudo do pâncreas com envolvimento variável de outros tecidos regionais ou sistemas orgânicos.

A pancreatite deve sempre ser considerada aguda, salvo prova em contrário fornecida por tomografia computadorizada (TC), ressonância magnética (RM) ou colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPRE).

A pancreatite aguda grave é definida como quadro de pancreatite aguda acompanhada de disfunção orgânica importante e/ou presença de complicações locais (necrose, abscesso ou pseudocisto).

Podem também ser utilizados como critérios de pancreatite aguda grave a presença de mais de dois critérios de Ransom ou ainda escore APACHE II maior que 8. Sendo melhor evidenciada quando se tem disponível exame de imagem como radiografia de abdômen, Ultrassonografia ou TC de abdômen (padrão ouro).

Imagem de um Quadro sobre os Critérios de Atlanta para dianóstico de pancreatite Aguda grave

O quadro clinico, é constituído por:

  • Dor abdominal (Súbita, geralmente de forte intensidade, em faixa: epigástrio irradiando para dorso, piora com a alimentação). A dor abdominal está presente em mais de 95% dos pacientes.;
  • Náuseas e vômitos, podendo apresentar também Sinais de irritação peritoneal, Distensão abdominal, Derrame pleural.

Os achados do exame físico são proporcionais à gravidade do quadro de pancreatite.

O exame abdominal mostra dor em hipocôndrio direito e/ou epigástrio com defesa muscular, mas raramente com descompressão dolorosa. Pode haver distensão abdominal e diminuição da peristalse em decorrência do íleo adinâmico determinado pelo processo inflamatório pancreático. Taquicardia e hipotensão variáveis são decorrentes da hipovolemia secundária ao sequestro de líquido.

A presença de equimose em flanco esquerdo (sinal de Gray-Turner) ou na região periumbilical (sinal de Cullen) são indicativos de hemorragia retroperitoneal que pode ocorrer em casos de pancreatite grave.

Em relação aos exames complementares os principais achados laboratoriais são leucocitose e hiperglicemia moderada como resultado da resposta inflamatória sistêmica.

Há também elevação discreta das transaminases. Caso haja elevação significativa de ALT (acima de 150 UI/l), a etiologia biliar deve ser fortemente suspeitada. Contudo os principais exames laboratoriais para o diagnóstico da pancreatite são as dosagens de amilase e lipase séricas.

A hiperamilasemia é o marcador clássico da pancreatite. Apresenta alta sensibilidade, mas é pouco específica, já que em diversas situações – tais como insuficiência renal, parotidite, após a realização de CPRE, perfuração esofágica e gravidez – pode haver aumento de amilase sem a presença de pancreatite.

Normalmente, a hiperamilasemia é discreta não ultrapassando três vezes o valor normal. Mesmo nos pacientes com pancreatite aguda, a dosagem de amilase pode estar normal em alguns casos particulares: diagnóstico tardio, já que os níveis de amilase tendem a se normalizar após alguns dias de evolução.

A dosagem da lipase sérica é considerada o exame laboratorial primário para o diagnóstico de pancreatite, já que apresenta alta sensibilidade e especificidade e se mantém elevado por vários dias, superando assim a dosagem de amilase como exame diagnóstico.

Avaliação da gravidade

A determinação da gravidade da pancreatite no momento do seu diagnóstico é fundamental no seu tratamento, já que permite a identificação precoce das complicações, a triagem de pacientes para tratamento em Terapia Intensiva e baliza decisões terapêuticas.

As dosagens de amilase e lipase séricas têm baixa correlação com a gravidade da doença e a avaliação de clínica tem baixa sensibilidade na identificação das apresentações graves.

Os critérios de Ranson foram o primeiro escore largamente utilizado na pancreatite aguda. Inicialmente desenvolvido para avaliação da pancreatite alcoólica, foi modificado posteriormente para o uso também nos casos de etiologia biliar.

A presença de mais de dois critérios define o caso como grave com sensibilidade de 40% a 88%, especificidade de 43% a 90% e valor preditivo negativo em torno de 90%.

Como principais desvantagens temos a necessidade de avaliação por 48 horas e a relativa baixa sensibilidade e especificidade. Seu principal valor é na exclusão da presença de pancreatite grave, graças ao seu alto valor preditivo negativo.

Imagem da tabela sobre os critérios de Ranson

Já escala de APACHE II é um escore clínico amplamente utilizado na avaliação de gravidade em pacientes críticos. Inclui uma extensa lista de parâmetros fisiológicos e laboratoriais, idade, status neurológico e presença de comorbidades.

Valores acima de 8 são muito sugestivos de doença grave. A reavaliação do escore diariamente pode ser utilizada como parâmetro de resposta ao tratamento clínico18.

A principal desvantagem do APACHE II é sua complexidade e pouca praticidade.

Imagem da tabela de APACHE II

Classificação da Pancreatite Aguda

Pancreatite moderada, edematosa ou não-grave x pancreatite grave:

A diferenciação dependerá da presença de alguns critérios (Choque; Insuficiência Resp. (PaO2 ≤ 60 mmHg); Insuficiência Renal (CS > 2 mg/dL); Hemorragia Digestiva > 500; Complicações locais (necrose, pseudocisto, abscesso); Ao menos 3 critérios de Ranson e Apache II > 8.

2. Quais as possíveis etiologias?

A identificação do fator etiológico responsável pela pancreatite aguda é capital no seu tratamento já que este pode determinar o tratamento e sua eliminação pode levar à resolução do quadro ou prevenção de um novo episódio.

Em torno de 75% dos casos são causados por colelitíase ou abuso de álcool. Outros 10% não têm seu fator etiológico bem definido e são considerados idiopáticos.

Imagem de um Quadro com os principais datores etiológicos da pancreatite aguda

As causas podem ser divididas em: metabólicas (Álcool; Hiperlipoproteinemia; Hipercalcemia; Drogas (Ácido Valproíco, Azatioprina, diuréticos tiazídicos, inseticidas organofosforados, cocaína, metanol); Esteatose hepática gestacional aguda), mecânicas (Colelitíase; Pós-operatória; Trauma; Tumor de pâncreas; Obstrução duodenal; Colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPER)), infecciosas (Vírus: caxumba, enterovírus, hepatites A e B; Bactérias: Campylobacter spp., Mycoplasma spp., Mycobacterium avium, Salmonella spp.; Helmintos: Ascaris lumbricoides), vasculares (Choque; Ateroembolismo; Vasculites ), genéticas (Mutações no tripsinogênio catiônico (PRSS1); Mutações nos inibidores de tripsina (SPINK1)) e idiopáticas, sendo as principais:

Colelitíase

Causa mais comum de pancreatite aguda. De 3 a 7% dos pacientes com litíase biliar desenvolvem quadro de pancreatite aguda. Este risco é pouco maior em pacientes do sexo masculino e nos casos de cálculos pequenos, menores que 5mm.

Há mais de um século, Eugene Opie sugeriu que a pancreatite seria causada pela impactação de cálculos biliares na ampola de Vater. A infusão de sais biliares nos ductos pancreáticos leva ao desenvolvimento de pancreatite aguda.

Acredita-se que a captação destes sais pelas células acinares pancreáticas leve ao aumento do cálcio citoplasmático que, por sua vez, age em vários alvos intracelulares, tais como as mitocôndrias, cujo resultado é necrose celular.

Álcool

O uso crônico de álcool é uma das principais causas de pancreatite aguda e, certamente, a causa mais comum de sua forma crônica.

A fisiopatologia da pancreatite de etiologia alcoólica ainda não é bem conhecida e acredita-se que seja multifatorial. (Espasmo do esfíncter de Oddi, obstrução de dúctulos pancreáticos pela precipitação de proteínas no ducto pancreático com formação de plugues, ativação de zimogênios pancreáticos e resposta secretiva exagerada pancreática à colecistoquinina (CCK)).

Como apenas 5 a 10% dos alcoolistas são acometidos pela pancreatite aguda, a presença de fatores genéticos e ambientais é fortemente suspeitada. (Tabagismo, mutações nos genes CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator ) e SPINK1 (serine protease inhibitor kazal type 1 ) e sexo masculino foram identificados como fatores de risco para o desenvolvimento de pancreatite aguda em alcoolistas).

Hipertrigliceridemia

Responde por 2% dos casos. Deve ser suspeitada quando o nível sérico se encontra acima de 1000mg/dl.

Como ocorre rápida queda do nível sérico ainda nos primeiros dias de evolução, a dosagem de triglicerídeos deve ser solicitada para os pacientes com quadro clínico compatível com pancreatite aguda que não apresentem outra causa óbvia.

Elevações da amilase e lipase são pouco acentuadas e a evolução clínica é semelhante aos casos de etiologia biliar.

Pós-CPRE

A pancreatite aguda é a complicação mais comum da CPRE, ocorrendo em 5% dos pacientes submetidos ao exame.

É frequente a elevação assintomática da amilase após a CPRE, só deve ser considerado como caso de pancreatite na presença de dor abdominal típica e elevação de, pelo menos, três vezes dos níveis séricos de amilase ou lipase.

Autoimune

A pancreatite autoimune tem apresentação clínica característica. O quadro é subagudo e os achados clínicos apresentam mais semelhança com os encontrados na pancreatite crônica, tais como dor abdominal de leve a moderada e elevação discreta da amilase e lipase.

São achados característicos da pancreatite autoimune a elevação dos níveis séricos de IgG4, presença de infiltrado linfoplasmocítico e elevados níveis de IgG4 no tecido pancreático.

Os exames de imagem mostram aumento localizado do pâncreas, geralmente em sua porção cefálica com estenose ou irregularidades no ducto pancreático. Deve ter como diagnóstico diferencial, por conta destes achados, tumores pancreáticos.

O tratamento é feito com corticosteroides, com rápida melhora clínica e normalização dos achados tomográficos.

Hereditária e Genética

A pancreatite hereditária tem caráter autossômico dominante com penetrância variável e, na maioria dos casos, é decorrente de mutações do gene PRSS1 (protease, serina1)13.

Essas mutações levam à conversão prematura do tripsinogênio e autodigestão pancreática, que se manifestam clinicamente através de quadros recidivantes de pancreatite aguda na infância que evoluem para pancreatite crônica.

A idade mediana de início dos sintomas é 10 anos. Há risco aumentado de desenvolvimento de câncer pancreático, principalmente se associado a outros fatores de risco como tabagismo e etilismo.

Outros genes implicados na pancreatite aguda são o SPINK1 e gene da fibrose cística (CFTR).

3. Quais os principais tratamentos?

Não há tratamento específico para o processo inflamatório, que impeça a progressão da doença. Durante a fase inicial, é clínico e sintomático; devendo-se suspender a ingesta oral.

O suporte clínico consiste em manutenção da perfusão tecidual através de reposição volêmica vigorosa e manutenção da saturação de oxigenação, analgesia (sendo classicamente utilizados opioides parenterais, como a morfina e a meperidina) e suporte nutricional.

Pacientes com pancreatite aguda geralmente apresentam hipovolemia importante secundária ao sequestro de líquido, necessitando de hidratação volêmica agressiva para melhorar a perfusão tecidual pancreática e tentar evitar o desenvolvimento de necrose pancreática e prevenir a evolução para formas graves.

Como não há como antecipar as necessidades de reposição volêmica, os pacientes devem ser monitorados continuamente para avaliar a efetividade do tratamento. Os critérios utilizados são o hematócrito, débito urinário, frequência cardíaca, azotemia e turgor cutâneo.

No caso de pacientes com comorbidades como insuficiência renal ou cardiopatias, pode ser necessária a utilização de monitorização invasiva. E buscar identificar e tratar a etiologia.

A maioria dos pacientes apresenta quadro de pancreatite aguda leve que responde satisfatoriamente ao tratamento clínico, com resolução dos sintomas e normalização dos níveis séricos de amilase e lipase.

Nestes pacientes, é reiniciada a dieta com líquido sem resíduos, e evoluída progressivamente para evitar dor pós-prandial e recidiva da pancreatite. os casos de pancreatite de etiologia biliar, estes pacientes devem ser submetidos à colecistectomia com colangiografia videolaparoscópica precoce, logo após a normalização da amilase e melhora dos sintomas.

Já a pancreatite aguda grave (PAG) deve ser tratada, inicialmente, com medidas gerais de suporte já descritas, idealmente em unidade de terapia intensiva.

Como a PAG determina um estado catabólico importante e antecipado um longo período sem ingesta oral, é fundamental o planejamento de suporte nutricional adequado.

Classicamente, o suporte nutricional destes pacientes era realizado através de nutrição parenteral total (NPT). No entanto, estudos prospectivos randomizados demonstraram que pacientes que receberam dieta enteral através de cateter nasojejunal apresentaram menos complicações infecciosas e menor mortalidade.

Tais resultados levaram à adoção da dieta enteral como primeira opção na PAG nas recomendações de diversas Sociedades Médicas.

A antibioticoterapia não está indicada quando se tem um caso de pancreatite branda, mas no caso de pancreatite aguda grave está indicado uso de antibiótico que atinjam germes entéricos e anaeróbios, está indicado (Preconiza-se o emprego de antibióticos com boa penetração no tecido peripancreático, tais como o imipenem, ciprofloxacina, metronidazol, cefotaxima).

O tratamento cirúrgico das pancreatites agudas biliares brandas será realizada uma colecistectomia, após a regressão das manifestações inflamatórias, para evitar recorrência.

Imagem de um fluxo sobre pancreatite aguda

Confira o vídeo:

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