Carreira em Medicina

Caso Clínico: Anemia Falciforme | Ligas

Caso Clínico: Anemia Falciforme | Ligas

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Paciente do sexo feminino, comparece a UPA com dor em MMII há 2 horas, associado a edema, e que não melhora com medicação. Relata que esses episódios têm sido recorrentes nos últimos anos e informa quadro gripal na semana anterior.

Identificação do paciente

L.S.H, sexo feminino, 30 anos, casada, negra e natural de Salvador, atualmente exerce função de doméstica. Paciente comparece na UPA.

Queixa principal

Dor nas pernas há 2 horas.

História da doença Atual (HDA)

A paciente refere que há 2 horas começou a apresentar fortes dores em MMII, 8/10, sem irradiação, sem melhora com utilização de analgésico e, no momento da consulta, região lombar também estava dolorida. Refere que há 1 dia sente fadiga, indisposição e notou a presença de edema doloroso em tornozelo. Relata também já ter observado inúmeros outros episódios de dores nas pernas no último ano, que as vezes cursavam com inchaço local.

Antecedentes pessoais, familiares e sociais

A paciente relata que na semana anterior apresentou febre, coriza e tosse. Afirma que utilizou Paracetamol para controle dos sintomas e permaneceu em repouso durante 5 dias, quando cursou com melhora.

Nega histórico de HAS e DM.

Refere que não tem contato com a mãe, e o pai faleceu aos 40 anos de idade devido a AVC.

A paciente relata que na última semana tem passado por um processo de separação com seu marido, fato que tem causado quadros de ansiedade e dores no peito. Relata também que o fato de continuar trabalhando como doméstica durante o período da pandemia tem mexido com seu psicológico e aumentado suas crises de ansiedade, que vêm acompanhada de palpitações e dores no peito.

Exame físico

Regular estado geral, eupneica, afebril, mucosas descoradas (++/IV), discreta icterícia. Sem alterações nos dados vitais.

Aparelho cardiovascular com achado de sopro difuso (++/IV) à ausculta.

Abdome plano, cicatriz umbilical intrusa, RHA preservado e timpânico a percussão. Traube livre. Fígado não palpável.

Presença de edema unilateral sem empastamento em tornozelo esquerdo (++/4), associado a úlcera maleolar de cerca de dois centímetros, com secreção purulenta e hiperemia nas bordas, dolorosa a palpação.

Aparelho respiratório sem alterações.

Suspeitas diagnósticas

  • Doença falciforme a esclarecer
  • Trombose venosa profunda
  • Síndrome viral a esclarecer

Exames complementares

Hematócrito = 24%

Hemoglobina = 8,2 g/dL

Reticulócitos =  135.000/mm3

VCM = 90 fl.

HCM = 33 g/dL

Análise do esfregaço = presença de drepanócitos

RDW = 15%

Leucócitos = 11.000 por mm³

Plaquetas = 420.000 por mm³

Glicemia em jejum = 80 mg/dL

Colesterol total = 151 mg/dL

HDL-C = 53 mg/dL

Triglicérides = 134 mg/dL ECG: sem alterações

ECG: sem alterações

Diagnóstico

O possível diagnóstico da paciente é de crise dolorosa secundária a Anemia Falciforme. Para alcançá-lo deve-se levar em conta os achados em três áreas:

Achados da anamnese: etnia negra, fortes dores em MMII (8/10), fadiga, indisposição e feridas nos tornozelos (úlcera maleolar).

Achados do exame físico: mucosas descoradas, leve icterícia, sopro difuso, úlcera maleolar.

Achados dos exames laboratoriais: baixa de hematócritos e hemoglobina, presença de drepanócitos evidenciando hemácias falcizadas, aumento de RDW indicando anisocitose, e leucócitos elevados.

No entanto, para diagnóstico definitivo deve-se realizar uma eletroforese da hemoglobina.

A anemia falciforme é uma doença autossômica recessiva causada pela mutação do gene da β-globina, provocando a substituição do aminoácido glutamato pela valina. Isso tem como consequência a malformação de algumas hemácias – que se apresentam em formato de foice –, com isso, são menos efetivas no transporte de O2, são menos maleáveis e vivem por menos tempo na corrente sanguínea, necessitando serem destruídas mais cedo do que uma hemácia comum, proporcionando maior trabalho dos órgãos hemocateréticos do fígado e baço.

Como as hemácias falciformes possuem formatos defeituosos, dois sintomas podem ser extraídos logo de início: a dificuldade no transporte de O2 irá causar fadiga e indisposição e a falta de elasticidade as levam a ficarem presas em pequenos vasos, causando dores e úlceras, ou vasos maiores, causando trombose, sintomas cardíacos e sintomas hepáticos.

Além disso, a presença elevada de leucócitos indica a ocorrência de infecção, que está diretamente atrelada a queda da função imunológica do baço na paciente em questão.

Outras complicações crônicas são comuns no paciente com doença falciforme, dentre elas:

  • Hipertensão pulmonar: está relacionada com a falcização dos pulmões, que podem surgir com outras condições, como Infarto pulmonar e pneumonia. Os seguintes sintomas podem estar presentes: dor torácica, febre, tosse e dessaturação.
  • Complicações cardiovasculares: é uma complicação crônica que pode se apresentar com aumento da área cardíaca e presença de sopros disusos.
  • Nefropatia: necrose renal pode ocorrer devido aos infartos que podem surgir nesse paciente.
  • Osteonecrose: oriunda de isquemia óssea.
  • Retinopatia: causada pela oclusão de vasos da retina, que podem levar a hemorragia e descolamentos.
  • Úlcera de perna: são resultado dos infartos na porção distal da circulação e de infecções que podem ocorrer devido a fragilidade imunológica desse paciente.

Outra complicação comum em homens é o priapismo, que pode ser causado devido a infarto de veias que circulam o sangue no pênis.

Discussão do caso de Anemia Falciforme

Quais os fatores de risco para anemia falciforme?

Um fator que aumenta o risco do paciente apresentar a doença falciforme é a presença do traço na família e a raça, uma vez que dados mostram uma prevalência da doença em negros.

Quais os outros diagnósticos prováveis?

Essa paciente ainda apresenta como diagnóstico diferencial a Hemoglobinopatia SC, que é um tipo de doença falciforme, mas que tem quadro clínico mais moderado que a anemia falciforme. Ao contrário da anemia falciforme que é uma alteração homozigótica, a hemoglobinopatia SC é uma alteração heterozigótica e para ser confirmada deve-se realizar a eletroforese da hemoglobina.

Qual o tratamento?

O tratamento das crises álgicas deve ser feito com administração de analgésicos, a depender do quadro álgico é recomendado que seja administrado opioides, hidratação oral, e outros medicamentos de suporte quando necessários: oxigênio, antibióticos e transfusão sanguínea.

A utilização da hidroxiureia pode ser feita quando o paciente atende os critérios, como: duas ou mais crises álgicas por ano, com necessidade de internação hospitalar; presença de alguma disfunção orgânica relacionada a AF; e anemia profunda, desde que reticulócitos >250.000.

ATENÇÃO: todos pacientes com crise dolorosa devem ter casos infecciosos investigados e afastados.

O AVC do pai da paciente está relacionado com a AF?

AVC é uma complicação que pode ocorrer em pacientes com anemia falciforme. Pela idade do pai ao falecer, essa pode ter sido uma das causas, uma vez que na anemia falciforme, com o passar da idade o risco para esse evento aumenta.

A fisiopatologia envolvida nesses acometimentos envolve a estenose e oclusão de vasos cerebrais, potencialmente causados pela falcização das hemácias e pela alteração a viscosidade sanguínea causada pela anemia, que leva a maior turbulência do sangue e maior probabilidade de lesão endotelial.

Existe possibilidade de paciente com Anemia Falciforme apresentar esplenomegalia? Em que condições e de que forma?

Normalmente, nos primeiros meses de vida o baço aumenta de tamanho pois o processo de hemólise está aumentado. No entanto, devido aos sucessivos infartos causados pelas vaso oclusões, o baço e sua função começa a reduzir, tendo em vista que os infartos levam a um processo de fibrose do órgão, que depois de um tempo irá reduzir de tamanho e perderá sua função. Essa perda de função é que justifica a maior susceptibilidade do organismo a infecções.

Portanto, nessa paciente, devido a sua idade, era esperado que o Traube estivesse livre.

Qual a relação dos sintomas de febre, tosse e coriza com a AF?

Os sintomas relatados pela paciente podem sinalizar uma infecção anterior, que é comum em pacientes com anemia falciforme sem tratamento, uma vez que eles têm um sistema imune menos robusto. Além disso, infecções podem precipitar as crises álgicas nos pacientes com anemia falciforme. Sendo assim, é um dado clínico que auxilia no raciocínio diagnóstico para justificar a suspeita de anemia falciforme.

Outro fator importante, é que esses sintomas, associados a dor torácica, caso a paciente relatasse, poderiam sugerir uma complicação aguda importante da anemia falciforme que é a Síndrome torácica aguda.

Associado a febre e especialmente a dessaturação e dispneia sendo responsável pela maior causa de morte em pacientes com anemia falciforme.

Conclusão

Como a paciente está com uma crise álgica aguda, o tratamento básico seria composto por hidratação oral, analgesia escalonada considerando o uso de opioides. Também deve ser considerado, caso se faça necessário, uso de  oxigênio, uso de antibioticoterapia e/ou transfusão sanguínea. Para esse paciente, caso se apresente sintomático do ponto de vista da anemia, deve ser considerada transfusão de concentrados de hemácias (filtrada e fenotipada).

Como a paciente já apresenta complicações crônicas, deve-se associar a essa paciente ácido fólico e hidroxiureia.

Autores, revisores e orientadores:

Liga: Liga acadêmica de Gestão em Saúde (LAGS) – @lagsbahiana

Autor(a): Leonardo Santana Ramos Oliveira e Rafael Figueiredo Brandão Aragão – @leonardosro

Revisor(a): João Cláudio Nunes Carneiro Andrade

Orientador(a): Eliana de Paula Santos

O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/anvisa/diagnostico.pdf

GOLDMAN-CECIL, 25ª edição.

https://www.sanarmed.com/resumo-de-anemias-ligas

https://www.sanarmed.com/resumo-anemia-falciforme-ligas

KASPER, D. L. [et al]. Medicina Interna de Harrison. 19ª edição. Porto Alegre: AMGH, 2017. e-PUB.

https://assets.unitpac.com.br/arquivos/Revista/64/2.pdf