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Resumo sobre Febre Reumática | Ligas

Resumo sobre Febre Reumática | Ligas

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A febre reumática (FR) é uma consequência não supurativa que ocorre duas a quatro semanas após a faringite por estreptococo beta hemolítico do grupo A (EBHGA), o Streptococcus pyogenes, consistindo em manifestações clínicas características com repercussões sistêmicas, como artrite, cardite, coreia, eritema marginado e nódulos subcutâneos. Os danos às válvulas cardíacas podem ser crônicos e progressivos.

Epidemiologia

A Febre Reumática é a doença reumática mais comum no Brasil. Geralmente, o primeiro surto de FR ocorre no paciente em idade escolar e no adolescente, assim como sua recidiva. São raros os casos diagnosticados antes dos 5 anos e depois dos 15 anos ou na vida adulta. Além disso, a doença acomete ambos os sexos.

Patogênese

A faringite estreptocócica é a única infecção estreptocócica claramente associada à febre reumática. O tecido linfoide da orofaringe pode ser importante no início da resposta anormal do hospedeiro a esses antígenos com reatividade cruzada em órgãos-alvo. Já as infecções cutâneas como impetigo ou pioderma não foram comprovadas como causadoras.

A parede celular bacteriana é composta pelas camadas externa, média e interna, sendo que a primeira contém as proteínas M, T, R e o ácido lipoteicoico, responsável pela ligação da bactéria à fibronectina presente na célula epitelial oral do hospedeiro, iniciando a colonização. O fator de virulência mais importante do EBHGA é a proteína M, altamente antigênica, que impede a fagocitose. A proteína M apresenta hipervariabilidade que define os 80 sorotipos bacterianos. Os sorotipos M1, M5, M6 e M19 são denominados reumatogênicos.

Após a infecção faríngea, a ativação do sistema imune inato leva à apresentação de antígenos da bactérias aos linfócitos T.  Prontamente, há a produção de IgM e IgG e ativação de linfócitos T CD4+. Em indivíduos suscetíveis, o mimetismo molecular é implicado como uma resposta de reação cruzada que resulta na artrite transitória devido à formação de complexos imunes, coreia devido à ligação do anticorpo aos núcleos da base e cardite devido à ligação do anticorpo e infiltração de células T.

Diagnóstico

O diagnóstico é feito através dos critérios de Jones. Estes são considerados de acordo com a classificação da população em baixo ou médio/alto risco para febre reumática.

Critérios de Jones para população de baixo risco: pacientes que nunca tiveram alguma manifestação de FR.

Critérios maiores:

  • Poliartrite
    • Cardite clínica/subclínica
    • Coreia
    • Eritema marginado
    • Nódulos subcutâneos

Critérios menores:

  • Febre acima ou igual a 38,5ºC
    • Poliartralgia
    • Aumento do intervalo PR
    • VHS acima ou igual a 60mm/1ª hora
    • PCR acima ou igual a 3mg/dL

Critérios de Jones para população de médio/alto risco:

Critérios maiores:

  • Poli ou monoartralgia
    • Cardite clínica/subclínica
    • Coreia
    • Eritema marginado
    • Nódulos subcutâneos

Critérios menores:

  • Febre acima ou igual a 38,5º C
    • Monoartralgia
    • Aumento de intervalo PR
    • VHS acima ou igual a 30mm/1ª hora
    • PCR acima ou igual a 3mg/dL

O diagnóstico considera se há possibilidade de um primeiro surto de febre reumática ou se há recorrência da patologia.

Diagnóstico do primeiro surto de Febre Reumática:

  • 2 critérios maiores e evidência de infecção estreptocócica prévia OU
  • 1 critério maior e 2 menores e evidência de infecção estreptocócica prévia.

Diagnóstico das recorrências:

  • 2 critérios maiores OU
  • 1 critério maior e 2 menores OU
  • 3 critérios menores.

A evidência de estreptococcia prévia se dá através de cultura, ASLO, teste rápido e/ou história de escarlatina.

Quadro clínico

Manifestações Maiores

  • Artrite

A artrite merece grande destaque no quadro clínico da febre reumática. Pode ser definida como a presença de edema ou dor acompanhada de limitação do movimento articular. Normalmente dura de 1 a 3 semanas e caracteriza-se por uma poliartrite em 75% dos casos, acometendo grandes articulações como joelho, tornozelo, punho, cotovelo e ombro, além de ser migratória e assimétrica, ou seja, os sintomas permanecem de 1 a 5 dias em cada articulação. Porém, também pode ser considerada uma poliartrite aditiva. Possui boa resposta ao uso de anti-inflamatórios não esteroidais, diferentemente do que acontece com a artrite reativa pós-estreptocócica.

A aspiração da articulação e a avaliação do líquido sinovial, incluindo cultura, apenas são indicadas na presença de grande derrame articular ou se houver suspeita de artrite séptica.

  • Cardite

Por acometer pericárdio, miocárdio e endocárdio, passa a ser denominada pancardite. Entretanto, ressalta-se a endocardite como grande símbolo da febre reumática pelo envolvimento das valvas aórtica e mitral, em detrimento das valvas tricúspide e pulmonar (menos acometidas). Clinicamente, pode-se auscultar um sopro em 40 a 50% dos pacientes. A regurgitação mitral é a forma mais típica de valvulite, caracterizada por um sopro pansistólico mais audível no ápice e irradiando para o ápice.

O sopro de Carey Coombs é mesodiastólico, melhor auscultado no ápice, sendo indicador de regurgitação mitral moderada a grave. A regurgitação aórtica, por sua vez, é caracterizada por um sopro diastólico precoce ouvido na base do coração, tornado mais alto pelo paciente sentado para frente em expiração forçada.

A cardite acaba por tornar-se a manifestação mais grave embora seja necessário lembrar que pode cursar de uma forma subclínica – sem alterações no traçado eletrocardiográfico e com ausência de sopro, o que requer estudos ecocardiográficos para sua documentação.

  • Coreia de Sydenham

Também conhecida como coreia menor ou dança de São Vito, esta manifestação pode surgir até 8 meses após a infecção aguda. Nas crianças, observa-se não somente certa desatenção, labilidade emocional e hiperatividade, mas também a presença de tiques e obsessões/compulsões. Quanto às alterações motoras, ressaltamos os movimentos rápidos, incoordenados, arrítmicos e involuntários que podem cursar concomitantemente com hipotonia, disartria e disfagia.

Os movimentos coreiformes frequentemente são mais visíveis de um lado do corpo ou unilaterais (hemicoreia) e cessam durante o sono, além de piorarem quando a criança percebe que está sendo observada. A fraqueza muscular é mais bem demonstrada pedindo ao paciente que aperte as mãos do examinador, o famoso “sinal de ordenha”.

  • Eritema Marginado

Esta manifestação, apesar de pouco frequente nos dias atuais, quando presente, costuma ter associação com a cardite e piorar com a exposição ao calor. O observador consegue perceber máculas ovaladas, róseas, com expansão centrífuga e margem serpiginosa, distribuídas pelo tronco, abdome e na porção proximal aos membros superiores e inferiores.

  • Nódulos Subcutâneos

Os nódulos de Maynet possuem cerca de 0,5 a 1cm de diâmetro, embora sejam duros, indolores e não aderidos. Podem ser vistos na superfície extensora dos cotovelos, punhos, tornozelos, crânio e coluna vertebral. Tendem a regredir após 1 mês.

Manifestações Menores

  • Febre: geralmente persiste por 2 a 3 semanas, conjuntamente com mal-estar, prostração e palidez
  • Artralgia: achado inespecífico presente em grandes articulações na forma de poliartralgia que não limita os movimentos
  • Elevação das proteínas de fase aguda: VHS ≥60 mm/hora e PCR ≥3 mg/dL
  • Aumento do intervalo PR: sua interpretação depende da idade e da frequência cardíaca e é superior a 0,2 segundos em adultos; até um terço das crianças com infecções estreptocócicas não complicadas têm um intervalo PR prolongado

Sequelas Tardias

Doença Cardíaca Reumática: geralmente ocorre uma a duas décadas após a infecção e é uma importante causa de doença valvar adquirida globalmente. A válvula mitral é mais comumente envolvida do que a aórtica. Pode progredir para estenose mitral devido a fibrose e calcificação.

Artropatia de Jaccoud:  envolve o afrouxamento e o alongamento periarticular e nos tendões das mãos e/ou pés. As deformidades são indolores e não causam prejuízo funcional.

Tratamento da Febre Reumática

O tratamento deve ser feito com o objetivo de erradicar o estreptococo, através do uso de penicilina G benzatina (se alergia à penicilina, usar eritromicina como segunda escolha), além de tratar as manifestações clínicas da doença.

Em caso de artrite, utilizar ácido acetilsalicílico (AAS) ou naproxeno. A resposta da febre e da artrite ocorre em 24 a 48 horas. Após 2 semanas de dose plena, ela deve ser reduzida e retirada em 4 semanas (AAS 80 a 100 mg/kg/dia, 4 vezes/dia, máximo de 3 g/dia; naproxeno: 10 e 20 mg/kg/dia, 2 vezes/dia).

Em caso de cardite, utilizar corticosteroide 1 a 2 mg/kg/dia (máximo de 60 mg). Manter dose plena por 2 a 3 primeiras semanas, fracionada em 2 ou 3 vezes/dia. Posteriormente, reduzir as doses em 20% a cada semana, administradas em dose única pela manhã.

Em caso de coreia, podem ser usados benzodiazepínicos e o fenobarbital. Na coreia grave, costumam ser utilizados o haloperidol, o ácido valproico e a carbamazepina.

Além disso, orientar repouso por, pelo menos, 2 semanas. Na cardite moderada/grave, deve ser feito por 4 semanas.

Profilaxia primária: realizada através do tratamento das tonsilites estreptocócicas na população.

Profilaxia secundária: possui como objetivo impedir uma nova estreptococcia na pessoa que já teve algum surto de febre reumática. Recomenda-se o uso de penicilina benzatina via intramuscular, realizada a cada 3 semanas. Outras opções são a penicilina oral ou sulfadiazina em doses diárias.

Se uso de sulfadiazina, realizar hemograma a cada 15 dias nos primeiros 2 meses de uso e, posteriormente, a cada 6 meses (suspender o medicamento se leucopenia abaixo de 4.000 leucócitos/mm³ e menos de 35% de neutrófilos). Pacientes com alergia comprovada à penicilina ou sulfa podem receber eritromicina.

A duração da profilaxia com penicilina benzatina em pacientes que tiveram cardite leve sem lesão residual ou insuficiência mitral leve deve ser feita até 25 anos ou 10 anos após o último surto. No caso de lesão valvar residual moderada ou grave, a profilaxia deve permanecer até 40 anos ou por toda a vida.

Autores, revisores e orientadores:

Liga Acadêmica de Clínica Médica do Seridó (LACLIMS) – @laclimsemcm

Autor(a) : Maria Clara de Araújo Jales – @itsjales

Revisor(a): Dorothy Bezerra Linhares – @dorothybezerra

Orientador(a): Francisco Belisio de Medeiros Neto – @drbelisiogeriatra

O texto acima é de total responsabilidade do(s) autor(es) e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


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Referências:

OLIVEIRA, Sheila Knupp Feitosa de. In: BURNS, Dennis Alexander Rabelo et al. Sociedade Brasileira de Pediatria. Tratado de Pediatria. 4ª edição. Barueri, SP: Manole. 2017. Volume 2, Seção 22, Capítulo 1.

UZIEL,l Y.; PERL, L.; BARASH, J.; HASHKES, P.J. Post-streptococcal reactive arthritis in children: a distinct entity from acute rheumatic fever. Pediatr Rheumatol Online J. 2011;9(1):32. Acesso em 27 mar. 2021.

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3217846/

SALLUM, Adriana Maluf Elias; FEBRÔNIO, Marília Vieira; SOUSA, Roberta Oriana A. L. de; SILVA, Clovis Artur Almeida da.Febre reumática. In: SILVA, Clovis Artur Almeida da; CAMPOS, Lúcia Maria de Arruda; SALLUM, Adriana Maluf Elias. Doenças reumáticas na criança e no adolescente. Coleção Pediatria do Instituto da Criança do HCFMUSP. 3ª edição. Barueri, SP: Manole, 2018. Capítulo 8.

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STEER, Andrew; GIBOFSKY, Allan. Acute rheumatic fever: Clinical manifestations and diagnosis. Waltham (MA): UpToDate, Inc., 2020.  Acesso em: 27 mar. 2021.

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