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Refluxo Gastroesofágico em crianças: o que você precisa saber | Colunistas

Refluxo Gastroesofágico em crianças: o que você precisa saber | Colunistas

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1. Definições

Refluxo gastroesofágico (RGE): é a passagem fisiológica do conteúdo do estômago para o esôfago.

Regurgitação: é o refluxo do conteúdo gástrico espontâneo, passivo ou sem esforço, que chega à orofaringe e pode sair ou não pela boca. Após um episódio de regurgitação, é comum o lactente ter fome.

Vômitos: o refluxo do conteúdo, nesse caso, ocorre com esforço, forçado. É um reflexo altamente coordenado pelo centro medular do vômito, envolvendo músculos abdominais e respiratórios.

Doença do refluxo gastroesofágico (DRGE): diferenciada do refluxo fisiológico pelas consequências patológicas, como sintomas incômodos e complicações associadas.

2. Epidemiologia

O refluxo gastroesofágico geralmente ocorre de forma fisiológica, sendo mais comum em lactentes. Esses episódios podem ocorrer cerca de 30 vezes em um único dia, diminuindo de frequência com o crescimento da criança.

O refluxo surge nos primeiros meses de vida, sendo mais comum em torno dos quatro meses e, na maioria das vezes, desaparecendo após o primeiro ano de vida. Crianças maiores geralmente têm sintomas mais crônicos, resolvendo-se em cerca de metade delas.

Há a possibilidade de que crianças com episódios frequentes de refluxo tenham maior probabilidade de desenvolver a doença futuramente. A DRGE é o distúrbio esofágico mais comum em crianças de todas as idades e provavelmente tem influência genética.

A doença pode levar à sintomatologia muito incômoda e consequências respiratórias e esofágicas, como pneumonias, bronquiectasias, estenoses do esôfago e esôfago de Barrett.

3. Anatomia do Esôfago

O esôfago é um tubo muscular oco entre a faringe e o estômago que transporta alimentos e líquidos desde a boca até o estômago. Possui cerca de 8 a 10 centímetros em um recém-nascido, atingindo cerca de 25 a 30 centímetros no adulto.

O esôfago possui, em suas extremidades, o esfíncter esofágico superior (EES) e o esfíncter esofágico inferior (EEI), no músculo cricofaringeano e na junção gastroesofágica, respectivamente. Estes, normalmente, encontram-se fechados e relaxam para a deglutição.

O EEI permanece aberto desde o início da deglutição até a passagem da onda peristáltica, e também relaxa transitoriamente para permitir a saída de ar do estômago e o refluxo fisiológico. A pressão de repouso tônica do EEI é entre 10 e 45mmHg, e se eleva com o aumento da pressão abdominal, estímulos colinérgicos, em resposta à gastrina ou alcalinização do estômago e alguns medicamentos.

Cerca de três centímetros do esôfago distal formam sua porção abdominal, que inclui o EEI. O aumento da pressão abdominal aumenta a pressão do esfíncter, reforçando esse mecanismo de defesa.

A sustentação do EEI por músculos respiratórios que o circundam também é uma proteção contra o refluxo. Histologicamente, o esôfago é coberto por epitélio escamoso estratificado não queratinizado e, na junção gastroesofágica, coberto por epitélio colunar simples. O epitélio escamoso protege contra a acidez das secreções gástricas.

4. Fisiopatologia

O refluxo gastroesofágico fisiológico, muito comum e frequente em lactentes, deve-se, principalmente, à imaturidade do EEI, permitindo o relaxamento transitório do esfíncter, que ocorre independente da deglutição.

O RGE ocorre mais frequentemente após a alimentação, quando a distensão gástrica estimula o relaxamento do EEI. O posicionamento da criança também exerce influência na ocorrência do refluxo, estando a posição supino mais relacionada aos episódios.

A DRGE envolve alguns fatores extras em sua fisiopatologia. Nesse caso, há um desequilíbrio entre os fatores protetores e de lesão da mucosa. Os fatores protetores principais são o fechamento tônico do EEI e as estruturas circundantes que auxiliam esse fechamento, o peristaltismo primário e secundário, que fazem a depuração esofágica (também conhecido como clearance esofágico), e a mucosa, que promove resistência ao ácido.

Dentre os fatores que promovem lesão da mucosa, estão o baixo tônus esfincteriano, que promove um relaxamento anormal frequente do EEI, disfunção peristáltica do esôfago e a abrasão promovida pela acidez gástrica. Quando há esofagite crônica, instala-se um ciclo vicioso, onde a peristalse defeituosa, o baixo tônus do EEI e o encurtamento do tubo, devido à inflamação, induzem uma piora da DRGE.

O relaxamento transitório do EEI ainda é o principal fator envolvido, mas as manifestações da doença dependem principalmente da frequência e duração do refluxo, acidez do conteúdo e suscetibilidade da mucosa.

5. Manifestações Clínicas e Complicações

A avaliação do refluxo em crianças deve ser iniciada com uma anamnese e exame físico detalhados, que, na maior parte das vezes, são suficientes para o diagnóstico de refluxo fisiológico.

5.1. Sinais de alerta

Nesse momento, é necessária atenção especial aos sinais de alerta, que podem sugerir outros diagnósticos, necessitando de avaliação mais aprofundada. Os sinais e sintomas de alarme são:

Sintomas de obstrução ou doença gastrointestinal
Vômito bilioso
Sangramento gastrointestinal – hematêmese, hematoquezia*
Vômitos consistentemente fortes
Início do vômito após seis meses de vida*
Constipação ou diarreia
Sensibilidade abdominal, distensão
Pneumonia recorrente (aumenta a possibilidade de fístula traqueoesofágica) Aspiração (aumenta a possibilidade de fenda laringotraqueal)

Sintomas ou sinais sugerindo doença sistêmica ou neurológica
Hepatosplenomegalia
Fontanela abaulada
Macrocefalia ou microcefalia
Convulsões
Hipotonia ou hipertonia (por exemplo, paralisia cerebral)
Estigmas de doenças genéticas (por exemplo, trissomia 21)
Infecções crônicas (por exemplo, HIV)

Sintomas inespecíficos
Febre
Pneumonia*
Letargia
Baixo ganho de peso *

Tabela 1 – sinais e sintomas de alarme do refluxo gastroesofágico – adaptada de UpToDate
Os marcados com asterisco (*) também podem ser consequências da doença do refluxo gastroesofágico.

5.2. Avaliação do refluxo

Excluindo-se a presença dos sinais e sintomas de alarme, a criança deve ser avaliada quanto ao desenvolvimento normal para a idade e devem ser identificadas complicações secundárias da DRGE, como esofagite, recusa da alimentação ou irritabilidade. Na avaliação do refluxo gastroesofágico em crianças deve-se determinar se a regurgitação é decorrente de um processo patológico ou se leva a complicações.

Na anamnese, deve-se incluir a idade de início, padrão da regurgitação (quando ocorre, quantidade, aspecto), alimentação da criança e quantidades, história familiar de RGE, história psicossocial, alergias da criança, e trajetória de crescimento. Na ausência de sinais de alerta, não é necessário nenhum teste diagnóstico e/ou tratamentos para a criança com refluxo.

5.3. Refluxo gastroesofágico fisiológico

O RGE fisiológico, ou descomplicado, ocorre em bebês saudáveis, sem nenhum sinal de alerta, que, apesar de apresentarem regurgitação, têm ganho de peso adequado e exame físico normal. Essas crianças são chamadas de “cuspidores felizes”.

O refluxo fisiológico geralmente começa após a primeira semana de vida e antes dos 6 meses, com melhora com o passar do tempo e resolução até os 2 anos. Apesar do diagnóstico, essas crianças devem ser acompanhadas e reavaliadas quanto à presença de sinais de alerta. Se entre 18 a 24 meses os sintomas persistirem ou piorarem, a criança deve ser encaminhada ao especialista.

5.4. Doença do Refluxo Gastroesofágico

Alguns sintomas da DRGE incluem baixo ganho de peso, déficit de crescimento, recusa alimentar e irritabilidade, porém esses também são comuns em outras condições clínicas. O refluxo pode estar associado à sintomatologia respiratória, como tosse crônica, estridor recorrente e pneumonia recorrente.

Um conjunto de sintomas relacionados à doença é conhecido como síndrome de Sandifer, com contorções cervicais – arqueamento das costas, torção do pescoço e elevação do queixo. Sintomas mais raros são apneia e sibilância.

5.5. Complicações da DRGE

Entre as complicações da DRGE, destacam-se a esofagite de refluxo, úlceras de esôfago distal, estenose esofágica, sangramento, aspiração pulmonar e esôfago de Barrett. A esofagite é uma inflamação da mucosa pelos componentes ácidos do conteúdo refluído, que leva ao encurtamento do esôfago e induz a hérnia de hiato, perpetuando um ciclo vicioso de agressão à mucosa.

A estenose do esôfago ocorre principalmente na região do EEI e gera sintomas de obstrução esofágica, como disfagia e odinofagia. A microaspiração pulmonar do conteúdo refluído pode levar aos sintomas respiratórios do paciente.

O esôfago de Barrett decorre da substituição do epitélio escamoso do esôfago por epitélio colunar intestinal para maior resistência ao conteúdo ácido, e essa metaplasia pode levar ao adenocarcinoma esofágico.

6. Exames complementares

Inicialmente, alguns exames laboratoriais, como sangue oculto nas fezes, hemograma completo e eletrólitos devem ser pedidos. Caso a criança já tenha sido exposta ao trigo, centeio ou cevada, deve ser realizada triagem para doença celíaca com IgA contra a transglutaminase tecidual (IgA-tTG). Em casos graves de atraso no crescimento, pode ser realizada uma avaliação para erros inatos do metabolismo, com eletrólitos séricos, glicemia, função hepática, amônia, exame de urina e cetonas.

6.1. Estudo radiográfico com contraste:

pode ser útil para avaliar anormalidades anatômicas e motilidade em pacientes com vômitos, disfagia ou baixo ganho de peso. Uma das limitações é que pacientes com ou sem DRGE podem apresentar episódios de refluxo no exame. Pode detectar complicações da DRGE e ajudar no diagnóstico diferencial do quadro.

6.2. Endoscopia digestiva alta e biópsia:

possibilita a visualização direta da mucosa e permite a realização de biópsia do tecido. Podem ser vistos aspectos anatômicos que expliquem a causa ou que são consequência do refluxo, como inflamação, estenoses e alterações do tecido.

As principais indicações do exame são para crianças com sinais de alarme e aquelas que, mesmo após tratamento, não têm melhora dos sintomas. O papel principal da biópsia é excluir diagnósticos diferenciais, como esofagite eosinofílica, doença de Crohn e esôfago de Barrett.

6.3. pHmetria:

Uma sonda localizada no esôfago distal fornece informações como número de episódios de refluxo, duração do episódio mais longo e a porcentagem do tempo com o pH menor que 4. Não é essencial para o diagnóstico, pois um pH anormal pode não se correlacionar bem com a sintomatologia, sendo mais útil para avaliar a eficácia do tratamento com supressão ácida.

Em lactentes, que podem apresentar muitos episódios de refluxo, a associação entre o resultado anormal do exame e a presença de DRGE é fraca. Nessa faixa etária, é um exame mais selecionado para as crianças com episódios breves e graves de apneia, bradicardia, tosse ou desnaturação de oxigênio.

Para esses bebês, o exame normalmente é feito com o monitoramento dos sinais vitais (respiração, batimentos cardíacos e saturação de oxigênio), para observar se existe relação entre os sinais e os episódios de refluxo.

6.4. Impedância intraluminal:

atualmente é o método mais preciso para monitorar o refluxo gastroesofágico, rastreando através de eletrodos num cateter todo o conteúdo refluído, independente do pH. É útil em lactentes com sibilos ou tosse, que podem ter refluxo não ácido e pode ser usada para o diagnóstico de refluxo em prematuros.

Pode identificar conteúdo líquido, gasoso ou líquido-gasoso e até onde que altura reflui. Quando a impedância é feita simultaneamente com a pHmetria, é possível detectar o refluxo ácido e não ácido, tornando a técnica melhor.

7. Tratamento

O tratamento sempre deve ser iniciado com a educação da família sobre a condição. Mudanças do estilo de vida, envolvendo medidas dietéticas e de posicionamento podem melhorar a sintomatologia da criança, sendo recomendada para todas as que apresentam refluxo.

7.1. Mudanças no estilo de vida

As alterações dos hábitos de vida devem incluir o incentivo da amamentação com leite materno (evitando leite de vaca e de soja), evitar a exposição da criança à fumaça do tabaco e fracionar as refeições para que o lactente coma pequenas quantidades. Também pode ser experimentada uma dieta com alimentos mais espessados ou hipoalergênica.

Se a criança tem boa resposta à dieta sem leite de vaca ou soja, é recomendável manter até 1 ano de idade, quando o bebê talvez tenha se tornado tolerante. Em relação ao posicionamento, o bebê deve ficar na posição vertical por cerca de 20 minutos após a refeição e dormir em decúbito dorsal. Apesar da posição prona reduzir o refluxo, está associada à morte súbita do lactente, assim como a posição lateral. Não é necessário elevar a cabeça do berço, pois não altera o refluxo na posição supino.

7.2. Terapia medicamentosa

O tratamento medicamentoso não é indicado para todos os pacientes com refluxo, sendo recomendado para casos selecionados. Os medicamentos usados são supressores de ácido, como inibidores de bomba de prótons (IBP), antagonistas dos receptores da histamina 2 (H2RA) e agentes procinéticos.

O teste com supressores de ácido por duas semanas pode ser feito. É indicado para crianças com sinais endoscópicos de esofagite leve, com atresia esofágica, doenças neuromusculares, doenças respiratórias crônicas e para aquelas com sintomatologia importante que não melhoram com mudanças no estilo de vida. Nos lactentes com esofagite moderada a grave, esse teste pode ser estendido por 3 a 6 meses.

7.2.1. Inibidores de bomba de prótons

Os IBP, como omeprazol, lansoprazol, esomeprazol e pantoprazol, são mais eficazes que os H2RA e não apresentam taquifilaxia. Seu uso é recomendado 30 minutos antes da primeira refeição do dia e crianças menores necessitam doses mais elevadas por quilograma por metalizarem o medicamento mais rápido. Esses pacientes devem ser sempre reavaliados para a necessidade de manter o tratamento e tentar o desmame do IBP após 6 meses, quando pode ser feita uma transição para H2RA e redução gradual.

7.2.2. Antagonistas dos receptores H2

Os H2RA, como a ranitidina e famotidina, apesar de menos eficazes que os IBP, têm impacto no tratamento da esofagite, porém há tolerância com seu uso. Os procinéticos, como a metoclopramida e domperidona, têm papel limitado no tratamento do refluxo e não são tão seguros, podendo causar reação extrapiramidal ou alargamento do intervalo QT.

A conduta cirúrgica para resolução do refluxo, como a fundoplicatura, não tem muito espaço para crianças, principalmente aquelas menores de um ano, reservadas para casos de complicações graves.

Autora: Mariana Franco
Instagram: @marianafranco09