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O sistema de recompensa e a dependência química| Colunistas

O sistema de recompensa e a dependência química| Colunistas

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Há mais de meio século, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu que o uso de substâncias lícitas e ilícitas de forma abusiva se caracteriza como uma dependência e não como um vício ou habituação. A justificativa é que tal comportamento acarreta mudanças cerebrais que condicionam o uso frequente das substâncias, tornando difícil abandonar seu consumo, como será demonstrado ao longo do texto.

Na dependência química, a droga de abuso se torna parte das necessidades diárias do indivíduo, assim como comer e dormir, o que se deve às alterações cerebrais relacionadas ao equilíbrio fisiológico e psíquico. Ao longo do texto você conhecerá o principal mecanismo relacionado a dependência, o sistema de recompensa cerebral, bem como a neuroadaptação.

Princípios (reforços, etc)

Para compreender a dependência química, é importante conhecer alguns conceitos da toxicologia social.

Reforço primário é o potencial de uso contínuo influenciado pela própria substância, ou seja, características específicas, intrínsecas à droga, que estimulam o usuário a buscá-la novamente. A exemplo, cita-se a heroína (opioide), substância que possui maior potencial de reforço primário do que o etanol (álcool etílico), podendo causar dependência mais rapidamente.

Também relacionados aos efeitos próprios de cada substância, referente ao potencial de uso contínuo da droga, se tem o reforço negativo e o reforço positivo. O primeiro ocorre em situações nas quais o usuário busca novamente a droga devido a seus efeitos depressores, capazes de diminuir a ansiedade, o estresse e a dor. Já no reforço positivo, a motivação para busca recorrente se deve aos efeitos excitatórios da droga, os quais causam euforia, prazer e felicidade.

Por sua vez, o potencial de reforço secundário está relacionado às características sociais e ambientais que estimulam o uso da droga. Nesse caso, estabelece-se uma relação entre a droga e as circunstâncias relacionadas ao seu uso, a exemplo do fornecedor, local de consumo, objetos envolvidos no processo e até a via de administração. O consumo da droga gera uma forte memória, processo explicado mais a frente, fazendo com que se crie uma relação entre a sensação prazerosa  proporcionada e as condições ambientais do momento. O usuário pode ser estimulado ao consumo ao retornar àquele cenário inicial ou a ser exposto a elementos relacionados a ele, como o usuário de heroína diluída na colher, objeto que pode ser um gatilho para ativação da memória e estímulo ao uso.

Neurotransmissores e receptores principais do SNC

Os neurotransmissores do sistema nervoso formam sistemas, cada um responsável por estímulos diferentes em receptores específicos, mas que trabalham em conjunto através de informações diretas e indiretas para promover as reações neurológicas e psíquicas. Importante saber que a quantidade de neurotransmissores na fenda sináptica, bem como o tempo de disponibilidade, são diretamente proporcionais à atividade pós-sináptica. No caso da dependência química, os mais importantes são o GABA (Ácido gama-aminobutírico), glutamato e a dopamina.

GABA

O GABA (sistema GABAérgico) é o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso. Ele possui duas classes de receptores, GABA A e GABA B. Quando ligados ao GABA, o primeiro atua através da abertura de canais e influxo de cloreto, enquanto o segundo atua por abertura dos canais de potássio com posterior efluxo deste íon. De forma geral, esses mecanismos tornam a membrana do neurônio hiperpolarizada, diminuindo as chances de emissão de outro potencial de ação, ou seja, inibindo o potencial.  

Glutamato

O glutamato é o principal neurotransmissor excitatório do sistema nervoso, relacionado também aos estímulos de memória. Apresenta duas classes de receptores, os NMDA e os RM. Os primeiros, são receptores ionotrópicos associados a canais iônicos, enquanto os RM são metabotrópicos e apresentam sinalização via segundos mensageiros capazes de regular a atividade de canais de membrana. De forma geral, ao ligar-se aos receptores, o glutamato promove a despolarização da membrana, contribuindo na geração do potencial de ação.

Dopamina

A dopamina, da família das catecolaminas, tem importante papel na área de recompensa, estando intrinsecamente relacionada ao prazer, como será explicado no próximo tópico. Assim como todos os outros neurotransmissores, a dopamina após promover o sinal na fenda sináptica, deve ser retirada ou metabolizada para evitar o prolongamento da reação pós-sináptica (hiperexcitabilidade pós-neuronal). Sendo assim, ela pode ser retirada de três formas, difundida para fora da fenda, destruída por enzimas ou recaptada pelo neurônio pré-sináptico para posterior uso.

Sistema de recompensa

O sistema de recompensa, ou via mesocorticolímbica dopaminérgica, está envolvido na promoção das sensações de prazer e euforia, bem como na busca por ações ou substâncias que possam promover essas sensações. Ele é constituído, principalmente, pela área tegmental ventral (ATV), onde estão os corpos neuronais, núcleo accumbens (NAcc), amígdala e córtex pré-frontal, para onde se dirigem às fibras. A ATV apresenta em sua maioria neurônios dopaminérgicos e alguns neurônios GABAérgicos. O NAcc, além de compor o sistema de recompensa, é a principal estrutura do sistema límbico, responsável por emoções e percepções.

Quando realizamos alguma atividade que aciona esse sistema, os neurônios dopaminérgicos da ATV liberam dopamina na fenda sináptica no NAcc e na amígdala, de onde os sinais são enviados ao córtex pré-frontal, local de controle do raciocínio e do planejamento. De forma resumida, o que acontece é que a ativação do NAcc cria uma relação positiva com a substância promotora, no caso as drogas, ativando o giro do cíngulo que, juntamente com a amígdala, proporciona a formação de memória positiva. O sinal, ao chegar no córtex, irá modular aquela atividade de forma social, determinando a frequência e o modo de uso. Os neurônios GABAérgicos são capazes de inibir a liberação de dopamina na ATV e nas outras áreas, cessando o estímulo prazeroso. Isso ocorre de forma natural ao longo do dia, possibilitando a atividade influenciadora da área de recompensa. Esse mecanismo é importante, pois é através dele que recebemos o estímulo de realizar atividades essenciais à manutenção da vida. Depois de comer ou dormir, por exemplo, o sistema de recompensa é ativado, proporcionando felicidade e aumentando a propensão a repetição da atividade, como uma “recompensa” por realizar tal ato.

As drogas de abuso atuam sobre esse sistema, principalmente pelo aumento de dopamina, como será visto adiante, e supõe-se que esse seja o mecanismo principal responsável pela geração da dependência. Devido a ativação do sistema pela droga, ocorre assimilação cerebral do uso da substância como uma atividade positiva que deve ser repetida para gerar felicidade e recompensa. Com o passar do tempo, depois de instalada a dependência e devido aos mecanismos de neuroadaptação, o uso da droga passa a estar mais vinculado com alívio do desconforto da abstinência do que com a busca do prazer em si.

Neuroadaptação

O corpo humano deve estar em constante manutenção da homeostasia, buscando manter a funcionalidade normal dos sistemas. Quando a pessoa inicia o uso frequente da droga, essa substância passa a incorporar seu organismo, exigindo assim uma nova homeostasia. Dessa forma, o corpo adapta seu funcionamento, encarando a droga como um atuante permanente. A hipótese que melhor explica esse comportamento é a da neuroadaptação, que pode ser comprovada pelos mecanismos de tolerância e síndrome de abstinência.

Tolerância

Na tolerância, o organismo desenvolve maneiras de sobrepor a ação tóxica da nova substância e funcionar normalmente, exigindo do usuário um maior consumo de drogas para garantir a eficácia dos efeitos psicoativos.  Em alguns casos ocorre diminuição do número de receptores neuronais, ou redução da liberação do neurotransmissor em si, a fim de evitar hiperexcitabilidade ou inibição excessiva causada pela droga. 

Um outro exemplo pode ser visto no etilismo, quando o fígado passa a produzir maior quantidade de uma das enzimas que metaboliza o álcool, a aldeído desidrogenase. Sendo assim, com o passar do tempo, o corpo é capaz de metabolizar maiores concentrações de álcool no sangue, diminuindo seus efeitos psicoativos. Isso exige que, para que o usuário atinja os estados de euforia e felicidade presentes no início do vício, ele deve consumir maiores quantidades da bebida.

Síndrome de abstinência

A síndrome de abstinência é caracterizada por um conjunto de manifestações clínicas indicativas de que o indivíduo passou um tempo maior que o esperado sem usar alguma substância. Devido a ativação do sistema de recompensa, o cérebro assimila o consumo da droga como necessidade fisiológica que deve ser realizada obrigatoriamente. Como será explicado adiante, cada droga irá promover uma alteração cerebral, levando ao aumento ou diminuição de algum neurotransmissor. O organismo, como já dito, aprende a “conviver” com a substância, se adequando e criando um novo estado de homeostasia. Sendo assim, quando o usuário deixar de usar a droga, o organismo entrará em profundo desequilíbrio, levando algum tempo até se readaptar a ficar sem a droga. Esse desequilíbrio é marcado pelo conjunto de sinais e sintomas que formam a síndrome de abstinência. 

Imagine que o indivíduo consuma uma droga que atue aumentando a inibição ao sistema nervoso realizada pelo sistema GABAérgico. O organismo, para controlar o efeito depressor excessivo, diminui as quantidades de GABA normalmente liberadas pelos neurônios e restabelece a homeostasia. Nesse organismo, a quantidade de GABA é menor que o normal, porém a droga supre essa falta, potencializando a ação do neurotransmissor. Sendo assim, caso esse indivíduo resolva interromper o uso da droga, os níveis de GABA sozinho não serão suficientes para manter a homeostasia normal (sem a droga), causando uma hiperexcitabilidade geral por falta de inibição. Essa hiperexcitabilidade leva a geração de vários sintomas, a síndrome de abstinência, causando desconforto e estimulando o usuário a usar a droga para acabar com os sintomas perturbantes.

Drogas de abuso

Conheça, de forma resumida, o mecanismo de ativação do sistema de recompensa das principais drogas de abuso.

Cocaína

A cocaína se liga à bomba de recaptação da dopamina na fenda sináptica, fazendo com que ocorra prolongação do efeito de prazer e felicidade com concomitante ativação do sistema de recompensa. Além da dopamina, a coca impede a recaptação de serotonina, responsável pelo controle do humor, e atuante indireta do sistema de recompensa.

Anfetaminas

As anfetaminas provocam uma maior eliminação de dopamina nas vesículas pré-sinápticas, promovendo maior quantidade desse neurotransmissor na fenda sináptica. Elas também causam diminuição de sua recaptação, mas muito menos quando comparado a cocaína.

Etanol

O etanol atua, principalmente, sobre as vias dos sistemas GABAérgico, além de estimular o sistema serotoninérgico e inibir o sistema glutamatérgico, provocando seus efeitos sistêmicos e psíquicos. Sugere-se que o etanol provoque uma maior liberação de dopamina na fenda sináptica, ativando o sistema de recompensa.

Para saber mais sobre o mecanismo de ação do etanol clique aqui.

Nicotina

Assim como o etanol, a ativação de recompensa da nicotina também é indireta, através do glutamato. Ao se ligar aos receptores nicotínicos do sistema colinérgico, promove a liberação do glutamato, que, por ser um neurotransmissor excitatório, atua aumentando a liberação de dopamina na área de recompensa. Ela também promove a inibição do GABA, ou seja, evita que ocorra atividade inibitória sobre o excesso de dopamina, prolongando a sensação eufórica e prazerosa.

Maconha

A maconha é constituída por vários canabinóides, como tetrahidrocanabinol (THC), canabinol (CBN) e canabidiol (CBD). O THC é o mais abundante, sendo responsável pelos efeitos psicoativos da droga. O organismo possui receptores canabinóides naturais, CB1 e CB2, acoplados à proteína G, encontrados em grande concentração na ATV e NAcc. Supõe-se que a ligação do THC com esses receptores promova uma maior liberação de dopamina e ativação da área de recompensa.

Opióides

Assim como na maconha, o organismo possui três receptores naturais para os opióides, sendo apenas um, o μ, responsável pelos efeitos de prazer causados no uso da droga. Essas substâncias ao se ligarem aos receptores na ATV e no NAcc promovem o envio de um sinal que aumenta a liberação de dopamina, ativando o sistema de recompensa. Assim como a nicotina, os opióides são capazes de inibir a inibição provocada pelo GABA, tornando os efeitos da dopamina na fenda sináptica mais duradouros.

Saiba mais aqui sobre a neurociência envolvida no uso das drogas.

Conclusão

Como se viu, a dependência química é uma questão neurológica decorrente da ativação do sistema de recompensa através do neurotransmissor dopamina, relacionado ao prazer. Fazem parte desse mecanismo a área tegmental ventral, o núcleo accumbens, a amígdala e o córtex pré-frontal. A partir da geração do estímulo cerebral dopaminérgico é criada uma memória positiva que estimula o uso contínuo das drogas.

Instalada a neuroadaptação, através dos mecanismos de tolerância, o indivíduo incorpora o uso da droga em suas necessidades fisiológicas diárias. Com o passar do tempo, precisará de maiores quantidades da substância para atingir os picos de euforia existentes no início do consumo. A interrupção súbita, ocasiona a síndrome de abstinência, um conjunto de manifestações clínicas desconfortáveis que culminam no retorno ao uso da droga a fim de alívio dos sintomas, mantendo o ciclo de dependência.

Autora: Ana Luísa Tano Sanches

Instagram: @nanu_tsc


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

http://cienciasecognicao.org/neuroemdebate/arquivos/1997

Site Psiquiatria BH

https://www.uniad.org.br/wp-content/uploads/2013/10/Addictions_Neurobiology_final.pdf