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Deficiência de B12 em onívoros e veganos: por que e como rastrear? | Colunistas

Deficiência de B12 em onívoros e veganos: por que e como rastrear? | Colunistas

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Começando do começo

Estamos no século XXI, a nossa sociedade já percebeu que muitas coisas que antes se consideravam certas, hoje já não são mais. A ideia de mudança do estilo de vida, com uma alimentação mais saudável, respeitando o meio ambiente e o direito à vida e a liberdade dos animais são alguns dos pilares do movimento vegano, que ganham cada dia mais força. Segundo o IBGE, mais de 29 milhões de brasileiros se consideram vegetarianos, então, qual é a probabilidade de você atender um paciente vegetariano? Pois é, acho que você já descobriu a resposta, mas antes de tudo vamos esclarecer dois pontos importantes desse artigo: vitamina B12 e veganismo.

Vitamina B12

Sendo uma das 8 vitaminas que pertencem ao complexo B, a vitamina B12 representa uma família de substâncias que tem como grupo principal a cobalamina; esse grupo principal pode ter diferentes ligantes e, consequentemente, diferentes nomenclaturas: metil (metilcobalamina), hidroxil (hidrocobalamina), água (aquacobalamina), cianeto (cianocobalamina) e S-deoxiadenosina (deoxiadenosilcobalamina). Entender a complexidade da absorção da vitamina B12 é fundamental para compreender a deficiência dela:

Vegano e vegetariano não é a mesma coisa?

Veja bem, o termo vegetariano está relacionado exclusivamente à dieta, e dentro do vegetarianismo existem diferentes tipos, mas todos convergem em dois pontos: utilizam alimentos do reino vegetal e jamais ingerem carnes (nem peixe!).

Ovolactovegetariano

Não come carne, mas come ovos e derivados do leite. É de longe o tipo mais comum.

Lactovegetariano

Não come carne e nem ovos, mas come derivados do leite.

Ovovegetariano

Não come carne nem derivados do leite, mas come ovos.

Vegetariano estrito

Não come nenhum alimento de origem animal, inclusive mel.

Já o veganismo é um movimento político e social, vai além da alimentação, apesar de adotar como dieta a vegetariana estrita. A Vegan Society define o veganismo como um modo de viver que busca excluir, na medida do possível e praticável, todas as formas de exploração e crueldade contra os animais – seja na alimentação, no vestuário ou em outras esferas do consumo.

Relação veganismo x vitamina B12

As fontes alimentares seguras da vitamina B12 são os alimentos de origem animal, como carnes vermelhas, frango, peixe, leite e ovos. Logo, fica claro que esse grupo tem um risco elevado de desenvolver deficiência de B12, pois não ingere alimentos de origem animal.

Muitas pessoas confundem a origem dessa vitamina, porque, apesar das fontes alimentares serem de origem animal, a B12 é uma vitamina de origem bacteriana, e não animal como se pensa. Mas porque os alimentos de origem animal têm B12? Atualmente existe uma terceirização da cadeia de suplementação, e os animais criados para o abate ingerem a B12 na ração (e/ou de forma injetável), para promover o crescimento e ganho de peso, significando que eles não têm essa vitamina naturalmente em abundância.

No nosso corpo, algumas bactérias produzem B12 no intestino grosso, porém o local de absorção dessa vitamina é no íleo terminal, fazendo com que o local de produção seja depois do local de absorção, impedindo, assim, o seu uso.

Por que fazer rastreamento nos pacientes onívoros?

Apesar de esse grupo se alimentar de todos os grupos alimentares, alguns estudos trazem que 50% dessa população tem carência dessa vitamina. Mas por quê? É importante entender que a absorção da B12 tem uma complexidade considerável, dependendo de vários fatores, e que qualquer alteração em uma etapa da cadeia vai resultar no prejuízo da absorção.

Fazer uma associação das etapas da cadeia de absorção e o que pode estar interferindo nela vai fazer com que você consiga ter um raciocínio clínico mais eficiente para entender o que se passa com o seu paciente.

Liberação de cobalamina da proteína alimentar inadequada

Pacientes que têm essa etapa modificada podem ter deficiência mesmo fazendo a ingestão dietética em quantidades suficientes. Pacientes idosos podem ter essa dissociação insuficiente.

Secreção ausente de ácido e fator intrínseco

Em pacientes com deficiência no fator intrínseco resultante da atrofia gástrica das células parietais gástricas, a causa do problema é a secreção insuficiente de ácido clorídrico. É importante ficar de olho em pacientes que fizeram gastrectomia total e parcial, doença autoimune e que tiveram destruição da mucosa gástrica pela ingestão de substâncias cáusticas. Algumas literaturas trazem que pacientes com gastrectomia total devem fazer reposição profilática de vitamina B12.

Pacientes obesos que fizeram a cirurgia de by-pass gástrico bariátrica e pacientes que usam a longo prazo bloqueadores H2 e inibidor de bomba de prótons fazem parte do grupo de risco por terem alteração nessa etapa.

Eventos que podem atrapalhar as outras etapas

A quebra de proteínas R fica prejudicada na insuficiência pancreática e a hiperproliferação bacteriana no intestino delgado pode “roubar” a B12 livre antes que ela se ligue ao fator intrínseco, bem naquele momento em que a proteína R se solta da cobalamina.

Atenção redobrada em pacientes que fazem uso de metformina, porque esse fármaco pode diminuir a secreção tanto ácida quanto do fator intrínseco e, para completar, diminui o transporte da cobalamina nos enterócitos.

Um pouco da função metabólica

A vitamina B12 funciona como um cofator essencial para duas enzimas: metionina sintase e L-metilmalonil-coA mutase, agindo diretamente no metabolismo da homocisteína (Hcy). A metionina sintetase promove a metilação da homocisteína à metionina, tendo o 5-metiltetraidrofolato(5-MTHF) como doador de grupamento metil e a metilcobalamina como co-fator.

Após a metilação da homocisteína, a metionina formada é condensada com o trifosfato de adenosina (ATP), resultando na S-adenosilmetionina (SAM). Em seguida, por uma reação de desmetilação, forma-se a S-adenosil-homocisteína (SAH) com posterior hidrólise para liberar adenosina e Hcy, completando o ciclo, e tudo se repete mais uma vez!

A bioquímica explicando os sinais e sintomas da carência de B12

Com a deficiência, a metilação de homocisteína não ocorre e, consequentemente, a formação de S-adenosilmetionina fica prejudicada, o que é muito preocupante, pois este é o único doador de grupamentos metil para as inúmeras reações de metilação para a manutenção da mielina, provocando defeitos desmielinizantes no sistema nervoso. Como não ocorre essa manutenção de bainha de mielina de maneira eficiente, a condução do sistema nervoso fica prejudicada, gerando alteração na sensibilidade nos pés, percepção vibratória e da propriocepção e comprometimento da memória; geralmente as queixas relacionadas às alterações citadas acima são formigamento ao cruzar as pernas e dificuldade de concentração. E, associados a isso, soma-se os distúrbios psiquiátricos: depressão, mania, síndromes psicóticas, transtorno obsessivo-compulsivo e prejuízo de cognição.

Repare que sem a vitamina B12 o 5-metiltetraidrofolato não tem como doar seu grupo metil à homocisteína, gerando um acúmulo de 5-metiltetraidrofolato, impedindo sua reciclagem e impactando assim no ciclo do folato. O folato é um co-fator fundamental na síntese do DNA, e o impacto no ciclo gerará um defeito na síntese de DNA, dificultando a divisão celular na medula, enquanto o RNA e síntese de componentes celulares permanecem inalterados, produzindo macrocitose. Essa macrocitose está diretamente relacionada à anemia megaloblástica, onde o paciente tem os sintomas típicos de anemia: palpitações, fadiga e palidez. É importante frisar que a anemia geralmente acontece quando a deficiência já está avançada, os sinais neurológicos surgem mais precocemente que a anemia.

Como não acontece a metilação da homocisteína, isso resultará no aumento da concentração plasmática, gerando um aumento na formação de espécies reativas de oxigênio, da peroxidação lipídica e do dano tecidual do endotélio vascular, aumentando os riscos do paciente de desenvolver doenças cardiovasculares, doença de Alzheimer, demência e osteoporose.

Afinal, como fazer o diagnóstico de deficiência de B12?

O ácido metilmalônico (MMA) é o exame padrão ouro para fazer esse diagnóstico, pois tem uma ótima sensibilidade para alterações intracelulares de B12. Porém, como nem tudo é perfeito, é um exame extremamente caro e geralmente só é usado em pesquisas clínicas; o que nos resta a nós, brasileiros, é darmos aquele “jeitinho” para identificar essa deficiência de maneira indireta e intervir o mais precocemente possível.

Um estudo publicado em 2002 relacionou os níveis de vitamina B12 e homocisteína com os níveis plasmáticos de ácido metilmalônico em um gráfico de dispersão, e o objetivo do estudo era encontrar concentrações séricas de vitamina B12 e homocisteína que representassem níveis seguros de ácido metilmalônico. Na prática médica, os exames laboratoriais que devem ser solicitados são:

  • Vitamina B12 sérica;
  • Homocisteína;
  • Ácido fólico;
  • Hemograma.

No exame de vitamina B12 sérica, os valores sempre devem estar acima de 490 ng/ml e homocisteína abaixo de 8 mcmol/l. Caso a homocisteína esteja alta, é importante você solicitar junto com os outros exames o ácido fólico, já que tanto a deficiência de folato quanto a B12 podem aumentar os níveis de homocisteína.

É provável que o paciente vegetariano já esteja fazendo o uso de suplementação e isso pode causar um falso-negativo para o diagnóstico de deficiência quando for analisada somente a B12 sérica, porque a B12 ingerida vai aumentar os níveis séricos por um certo tempo e não vai ser um bom indicativo da concentração no plasma intracelular. Mas isso não é motivo para solicitar ao paciente que ele pare de suplementá-la para realizar o exame, já que a homocisteína não é sensível às mudanças bruscas de níveis séricos de B12.

É sempre bom solicitar o hemograma para rastrear se o paciente já apresenta anemia, mas é importante salientar novamente que as alterações no hemograma só irão aparecer na deficiência avançada, ou seja, não espere seu paciente ter uma anemia megaloblástica para investigar a deficiência de B12.

Conclusão

É necessário que você esteja atualizado com as mudanças comportamentais que estão surgindo e entenda os impactos negativos e positivos desses comportamentos na saúde dos pacientes, para que você possa oferecer o atendimento de maneira integral, sempre respeitando o espaço e as escolhas. E não custa lembrar que a medicina preventiva é a medicina do futuro, evitar o desenvolvimento de doenças é a chave para uma melhor qualidade de vida do seu paciente.


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


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Referências:

PANIZ, Clóvis et al . Fisiopatologia da deficiência de vitamina B12 e seu diagnóstico laboratorial. J. Bras. Patol. Med. Lab., Rio de Janeiro , v. 41, n. 5, p. 323-334, Oct. 2005.

SVB Sociedade Vegetariana Brasileira. Disponível em: https://www.svb.org.br/vegetarianismo1/o-que-e.

W. Herrmann, J. Geisel. Vegetarian lifestyle and monitoring of vitamin B-12 status. Clin Chim Acta, 326 (2002), pp. 47-59.

LEHNINGER, T. M., NELSON, D. L. & COX, M. M. Princípios de Bioquímica. 6ª Edição, 2014. Ed. Artmed.

R.C. Langan, A.J. Goodbred. Vitamin B12 deficiency: recognition and management. Am Fam Physician, 96 (2017), pp. 384-389.