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Casos curiosos: herniorrafia ou ooforectomia? | Colunistas

Casos curiosos: herniorrafia ou ooforectomia? | Colunistas

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As hérnias umbilicais constituem uma das principais indicações de cirurgias eletivas, tanto em adultos, quanto em crianças. O caso aqui descrito é sobre uma mulher, obesa, na quinta década de vida, que, durante um reparo eletivo de hérnia umbilical, descobriu um grande tumor ovariano. 

O RELATO DE CASO

M.J.A.S., 48 anos, sexo feminino. Apresenta-se ao ambulatório geral do Hospital Universitário com a QPD “caroço no umbigo há 12 anos”. Durante a HDA refere aparecimento de abaulamento em cicatriz umbilical há 12 anos, durante sua última gestação. Nesse período, refere que o abaulamento vem, lentamente, aumentando de tamanho, mas não causa qualquer incômodo, a não ser estético. Nega alterações de pele na região ou do hábito intestinal. G4P4A1, refere queixas climatéricas, mas sem alterações do ciclo menstrual. Informa ganho de cerca de 15 kg nos últimos anos, estando com o IMC de 30,98 kg/m2. Durante o exame físico, fora evidenciado abdome globoso, flácido, sem alterações de pele, com herniação em região de cicatriz umbilical redutível e anel herniário de aproximadamente duas polpas digitais, sem sinais flogísticos. Abdome normotimpânico. À palpação superficial e profunda, não foram achadas alterações, com exceção de uma discreta diástase dos músculos retos abdominais. Não foi possível realizar palpação do fígado ou outras vísceras devido ao grande panículo adiposo. A hipótese diagnóstica levantada foi de hérnia umbilical e, como plano terapêutico, foram solicitados exames laboratoriais pré-operatórios, com programação do reparo eletivo do defeito herniário. 

Cerca de 02 meses depois, a paciente retorna ao ambulatório com os exames em mãos, sem alterações. Foi então dada a Autorização de Internação Hospitalar e a cirurgia ocorreu cerca de 45 dias depois. 

Durante a cirurgia, o médico cirurgião realizou a dissecção da região umbilical, até encontrar o defeito. Foi realizada, então, a exploração digital do mesmo, em que foi notada uma tumoração de consistência fibroelástica, de grandes dimensões, sendo, assim, necessária a ampliação da incisão cirúrgica para melhor avaliação. Após converter a incisão infraumbilical em uma laparotomia mediana, a tumoração foi melhor evidenciada. Tinha cerca de 20cm de diâmetro, e correspondia a uma tumoração de aspecto cístico do ovário direito. Fora, em seguida, realizada a ooforectomia direita e corrigido o defeito herniário que havia motivado o procedimento em primeiro lugar. Vale ressaltar que a paciente foi consultada durante a cirurgia e ofereceu consentimento para todas a condutas da equipe cirúrgica. 

Após aproximados 30 dias, a paciente retorna ao ambulatório, com ótimo aspecto de cicatrização, sem aparente recidiva da herniação umbilical e resultado do anatomopatológico da peça cirúrgica. A patologia evidenciou áreas de formações granulomatosas ao redor de ovos viáveis e calcificados de Schistosoma mansonii, sendo descartada qualquer possibilidade de formação neoplásica. A paciente foi medicada e referenciada para o setor de hepatologia para melhor investigação. 

HÉRNIAS UMBILICAIS

Hérnias são protrusões anormais de órgãos ou vísceras intra-abdominais recobertas por peritônio através de um orifício natural ou anômalo. A protrusão resulta do aumento da pressão intra-abdominal, que, ao ultrapassar a pressão externa, faz com que os órgãos protrusos se contraponham à parede abdominal, resultando em aumento da sua área de fraqueza.

Somente no estado de São Paulo, pelo Sistema único de Saúde, cerca de 50 mil reparos de hérnias da parede abdominal são realizados anualmente. Isso inclui herniorrafias umbilicais, hernioplastias inguinais e femorais e outros procedimentos para hérnias mais raras. A primeira cirurgia de uma hérnia umbilical ocorreu no ano de 1740 por Mayo, uma técnica efetiva e com baixas recidivas, mas somente em 1901 foi publicada. 

Devido à elevada morbimortalidade decorrente do encarceramento e estrangulamento das hérnias da parede abdominal, a conduta em geral é intervencionista, através de cirurgia eletiva. 

As hérnias umbilicais são mais comuns em mulheres, principalmente acima de 40 anos e obesas, ou com outros fatores que levam ao aumento da pressão intra-abdominal, como gestação, ascite e cirrose. Resultam de um defeito musculoaponeurótico da região da cicatriz umbilical. 

Geralmente se manifestam através de um abaulamento na região umbilical, podendo ou não ser acompanhadas de dor ou desconforto local. Quando há o encarceramento, a herniação deixa de ser redutível, o desconforto é maior e podem surgir sinais flogísticos. Quando há parada de eliminação de flatos e fezes, isto é, um processo obstrutivo, determina-se que houve o estrangulamento do conteúdo herniário, com provável inviabilidade de algum segmento intestinal. Nos dois últimos cenários, o tratamento cirúrgico deve ser feito em caráter de urgência. 

Durante a correção do defeito herniário, é comum sua exploração digital, a fim de determinar a viabilidade do conteúdo. Nos procedimentos eletivos, em geral, não há necessidade de investigação adicional. 

FORMAS ECTÓPICAS DA ESQUISTOSSOMOSE

A esquistossomose mansônica é uma afecção endêmica no nosso país, sobretudo em regiões que contêm grandes coleções de água doce, como rios e açudes. Isso, porque o ciclo biológico do parasita passa por essas áreas antes de que haja a contaminação do ser humano, que ocorre através da penetração das cercarias na pele do hospedeiro. 

Cronicamente, a doença se manifesta de maneira polimórfica, com a formação de granulomas em diferentes órgãos. Esse evento patogênico explica as manifestações da doença de maneira sistêmica. Deve-se ter em mente que a formação de granulomas, consequente dos ovos, pode ocorrer em qualquer tecido do corpo humano, havendo casos em órgãos reprodutivos femininos, masculinos, retina, pele, coração, tireoide, entre outros. Existe, ainda, a forma pseudoneoplásica, em que há a formação de tumores semelhantes a neoplasias, podendo também apresentar doença linfoproliferativa.

ESQUISTOSSOMOSE OVARIANA

No trato genital feminino, os ovários são os órgãos mais acometidos pela esquistossomose. Isso se deve a uma complexa rede vascular, que passa pelo sistema porta, plexo anorretal e finalmente recesso retovaginal, a partir de onde os ovos têm contato com qualquer estrutura do sistema reprodutivo feminino. 

Nesse caso, a paciente apresentava-se assintomática, mas alguns sintomas podem ser notados, como o aumento do volume abdominal, dor ou incômodo abdominal e sintomas referentes ao acometimento de outros órgãos. Apesar de ser considerada rara, é possível encontrar na literatura brasileira diversos relatos de caso dessa afecção, o que levanta um questionamento: a esquistossomose ovariana é um evento raro ou apenas subnotificado?

Autoria: Mylena Dantas